Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de S.Paulo. 8.10.1993
Só existe um problema tão grave e tão urgente no Brasil quanto o da inflação: o da miséria extrema, em que vive uma parte importante da população.Só existe um problema tão grave e tão urgente no Brasil quanto o da inflação: o da miséria extrema, em que vive uma parte importante da população. Instituir, portanto, um programa de renda mínima ou de imposto de renda negativo, do tipo que o Senador Eduardo Suplicy já logrou aprovar no Senado Federal, é o mínimo que se pode esperar de uma sociedade civilizada, que pretende ser moderna. Seu projeto pode ser melhorado. Existem alternativas ou variações em torno dele, mas a idéia básica - garantir a cada família brasileira um rendimento mínimo que lhe permita sobreviver com um mínimo de dignidade - é viável e deve ser gradual mas urgentemente implementada.A resistência à idéia parte do problema da viabilidade econômica. O conservador é sempre pessimista. Afirma que o ser humano é essencialmente egoísta, que a ação coletiva em torno de interesses comuns é utopia, que o progresso só ocorre a longo prazo como resultado da vontade e do trabalho individual de cada um testada pelo mercado. Assim, quando alguém lhe propõe um programa social qualquer, e especialmente um programa ambicioso como este, recorre imediatamente a argumentos econômicos: impossível, o Brasil não tem recursos para isto, precisamos primeiro resolver o problema da crise fiscal e da inflação, em seguida, estimular o trabalho, retomar o desenvolvimento e recuperar o nível de emprego.
Ora, é claro que primeiro será preciso estabilizar os preços. Sem isto nada é possível no Brasil. Mas é falso que, em seguida, se deva esperar que a educação e o desenvolvimento econômico resolvam no longo prazo os problemas sociais lancinantes e urgentes do país, e no mínimo ridículo afirmar que um programa de renda mínima desestimula o trabalho. Há aqui uma mistura de argumentos reais com pura ideologia.
Não existe uma correlação direta entre a percentagem da população que passa fome e vive na miséria e renda por habitante. No país mais rico do mundo - os Estados Unidos - milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza. Se um país tivesse uma distribuição de renda equilibrada, talvez não precisasse de um programa de renda mínima. A renda dos mais pobres já seria superior à renda mínima. Mas se isto não é verdade para os países desenvolvidos, nos quais a relação entre a renda do quinto mais rico e o quinto mais pobre da população é de 6 vezes, o que dizer de um país como o Brasil, onde a distribuição da renda é escandalosamente desigual, chegando aquela relação a 24 vezes? Nos países do Leste Asiático, que estão em pleno processo de desenvolvimento, não existem programas de renda mínima, mas graças às reformas agrárias e tributárias adotadas logo após a Segunda Guerra Mundial, a relação entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre é de apenas 7 vezes.
Sem dúvida, um programa de renda mínima seria desnecessário se o Brasil fosse um país desenvolvido e socialmente homogêneo. Ou se fosse absolutamente pobre, como alguns países africanos. Mas o fato é que é uma sociedade relativamente pobre e absolutamente desigual. Quarenta por cento da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza. Se não tomarmos medidas urgentes para minorar os problemas sociais do Brasil, continuaremos assistir à barbárie da fome, das chacinas, do assassínio de meninos, da prostituição infantil, da criminalidade crescente. Ao mesmo tempo que veremos acentuar-se a tendência a campanhas eleitorais populistas e agravar-se o problema da falta de legitimidade dos governos, na medida em que estes são eleitos por uma imensa massa de quase-cidadãos pobres ou miseráveis, que têm o direito do voto mas não o real exercício da cidadania.
Na verdade, minorar a miséria é uma condição não apenas para a governabilidade, mas para o próprio desenvolvimento. Sabemos que não é possível desenvolver sem educar, mas a educação é inviável quando a situação das famílias é de miséria. Os dois problemas fundamentais da educação primária brasileira são os altos índices de repetência e de evasão.