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A Ruptura de uma Aliança Política

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo, 29.5.1977

A característica fundamental da crise política brasileira atual é a ruptura da burguesia com o Estado, ou melhor, com a tecnoburocracia estatal que o dirige. Este é o fato novo que provavelmente tornará esta crise historicamente significativa. Não são a oposição e a crítica dos estudantes, dos trabalhadores, dos intelectuais ao Governo autoritário instalado no Brasil desde 1964 que tornam esta crise decisiva, já que esses setores jamais apoiaram o Governo. É a crescente oposição da burguesia, da classe empresarial, em todos os seus níveis, desde a pequena e média até frações cada vez maiores da alta burguesia, que coloca hoje em jogo o modelo político instalado em 1964 e consolidado em 1968, quando os ideais liberais do movimento inicial foram definitivamente postos de lado.
A crise política brasileira aprofundou-se nos últimos meses de forma decisiva. As causas dessa crise são múltiplas, mas a sua caracterização é uma só: o modelo político implantado no Brasil em 1964, para substituir o pacto populista, entrou em colapso. Esse modelo político estava baseado na aliança da tecnoburocracia civil e militar, que controla diretamente os aparelhos do Estado, com a burguesia e as empresas multinacionais. Era o modelo do tripé, em que os trabalhadores, os estudantes, os intelectuais e, de um modo geral, as esquerdas eram totalmente excluídos do sistema de poder. A crise do modelo define-se pelo rompimento cada vez mais nítido daquela aliança.
Este rompimento ocorre a partir do momento em que a burguesia local vai-se tornando crescentemente insatisfeita com os seus aliados tecnoburocratas estatais, e em conseqüência vai retirando seu apoio ao sistema. Nesse momento, o modelo do tripé entra em colapso. E mais do que isto, todo o sistema político está fadado a sofrer transformações profundas.
O Brasil viveu estes últimos 13 anos sob a égide de um regime militar. O Estado foi firmemente controlado por uma força pública coesa e ideologicamente bem armada. Esta tecnoburocracia militar chamou para auxiliá-la uma tecnoburocracia civil técnica e organizacionalmente bem equipada. Os dois grupos em conjunto adotaram a ideologia tecnoburocrática baseada na racionalidade técnica e organizacional, que se expressa na eficiência ou no crescimento da produção por habitante, e, especialmente entre 1967 e 1973, obtiveram êxito em sua política desenvolvimentista, ainda que à custa de um acentuado processo de concentração de renda, com graves prejuízos para os trabalhadores.
Em todo esse período os militares contaram com o apoio irrestrito da burguesia. Esta sentira-se profundamente insegura em 1963 e inicio de 1964. A revolução que então ocorre é realizada com todo seu apoio. E em seguida a burguesia entrega-se inteiramente nos braços da tecnoburocracia estatal. Em conseqüência, os militares dão a muitos a impressão de se terem transformado em senhores todo-poderosos. O poder parece ser exclusivamente militar, autonomamente militar. O poder das forças armadas parece derivar exclusivamente de seu controle de armas e soldados e de sua capacidade de organização.
Ora, semelhante hipótese só pode ser atribuída a uma leitura apressada das teorias sobre a emergência da tecnoburocracia no Brasil ou nos países periféricos em geral. Pessoalmente, tenho procurado estudar o mais possível este fenômeno fundamental do nosso tempo que é o da burocratização e estatização da sociedade. Mas isto não nos pode levar a esquecer que o Brasil é ainda uma formação social dominante capitalista. O capital, ou seja a propriedade privada dos instrumentos de produção pela burguesia, é ainda a relação de produção que controla maior volume de riqueza no Brasil. A propriedade estatal de meios de produção, embora crescente, é ainda secundária. E certo que a acumulação de “capital”, usada essa expressão em sentido amplo, já é hoje realizada de forma predominante pelo Estado. Mas o estoque de capital ainda é predominantemente privado. O lucro privado é ainda a forma dominante de apropriação do excedente, embora o volume de ordenados dos tecnoburocratas tenda a crescer exponencialmente. A coordenação da economia ainda é feita principalmente pelo mercado, embora o planejamento e a política econômica estatais tenham uma influência crescente na coordenação do sistema e na distribuição do excedente econômico. A ideologia burguesa ainda é hegemônica, embora a ideologia tecnoburocrática faça avanços em todas as frentes.
Em outras palavras, o Brasil é ainda uma formação social essencialmente capitalista, embora crescentemente tecnoburocrática ou estatal. Em conseqüência, a classe dominante no Brasil é a burguesia e não a tecnoburocracia militar. Estes possuem um certo grau de poder autônomo, na medida em que controlam diretamente o aparelho repressivo do Estado, mas sua autonomia é necessariamente limitada. Ela só parece plena nos momentos em que os militares contam com o apoio da burguesia. Quando esse apoio é retirado, o poder econômico e a hegemonia ideológica da burguesia levam a tecnoburocracia a fazer aflorar suas próprias contradições e a perder coesão e o poder.
É por isso que a crescente retirada de apoio da burguesia à tecnoburocracia estatal representa um golpe decisivo não apenas no modelo político do tripé, mas na própria continuidade do atual regime.
Os sintomas dessa ruptura tornam-se visíveis a partir do final de 1974. O rompimento tem início com a grande campanha contra a estatização; prossegue através da crítica às mordomias, ou seja, a crítica aos altos ordenados diretos e indiretos dos tecnoburocratas; aprofunda-se com o desencanto em relação à política econômica, à medida que esta vai-se tornando cada vez mais insegura, contraditória e ineficaz; agrava-se com a denúncia da corrupção estatal, que em grande parte se confunde com a concessão de favores do Estado a grupos econômicos pouco idôneos. Hoje a ruptura é clara. Desde a pequena até a média e a alta burguesia, a insatisfação com o sistema é geral. Pode ser observada nas mais diversas circunstâncias: nas reuniões sociais, nos encontros de empresários com os representantes do governo, nos editoriais de imprensa controlada pela burguesia, na quase unanimidade das manifestações estudantis e no apoio generalizado que elas vêm recebendo. Provavelmente, neste momento, só a burguesia subsidiada, que recebe diretamente os favores do Governo, e uma parte dos representantes oficiais da classe empresarial ainda apóiam o atual sistema autoritário. Os primeiros por interesses óbvios e os segundos em virtude da dependência em que se encontram as entidades que dirigem em relação ao Estado.
As causas desta crise de legitimidade sem precedentes podem ser encontradas originalmente na redução relativa do excedente econômico, que tem lugar no país a partir de 1974. Desta data em diante termina o “milagre”, o índice de crescimento da produtividade ou de renda por habitante cai, ao mesmo tempo em que os salários param de cair e chegam mesmo a crescer em 1975, como uma resposta do Governo à derrota eleitoral de novembro de 1974. Nesse momento, quando se reduz o índice de crescimento do excedente, quando o fim do milagre leva a tecnoburocracia estatal e a burguesia a encarar novamente as duras realidades da escassez — nesse momento torna-se patente a arbitrariedade do Estado autoritário no seu processo de dividir o excedente econômico. Pedem-se sacrifícios, mas esses sacrifícios obviamente não são iguais para todos. Seja em função de puro favoritismo, seja para obedecer à escala de prioridades estabelecida pelo planejamento estatal, o fato é que, em um momento de redução relativa dos lucros gerados pelo sistema, uns poucos continuam altamente beneficiados.
A burguesia vai, assim, sentindo-se ameaçada. A revolução fora feita em seu nome, mas os tecnoburocratas estatais agora parecem pretender alcançar uma autonomia que não estava prevista inicialmente. E utilizam esta autonomia em seu próprio benefício, como os casos dos altos ordenados e da corrupção deixam entrever, ou então em benefício de um pequeno número de favoritos.
Por outro lado e concomitante, os membros do Governo vão sendo atingidos por uma profunda crise de credibilidade. As declarações otimistas do Presidente e dos ministros são desmentidas no dia seguinte, pelos fatos ou por eles próprios.
Nesse momento, a crise política ganha autonomia, desloca-se de suas bases econômicas para explicar-se pela própria dinâmica dos fatos políticos. O Governo, desorientado, sentindo-se sem apoio, em total contradição com a sociedade civil, toma medidas impensadas que culminam com o fechamento do Congresso e o “pacote” constitucional em abril. Nesse momento, o Presidente compromete todo o sistema militar que representa com uma manobra eleitoral em benefício de seu partido — a Arena. O casuísmo das medidas, sua arbitrariedade e contingencialidade são gritantes. Para evitar a provável vitória do partido da oposição, o MDB, são tomadas medidas que violentam o senso jurídico da sociedade civil. Ora, o MDB já deu ampla demonstração de que é um partido de centro, com algumas tendências para a social-democracia. Uma vitória sua não põe, portanto, em risco a burguesia. E a burguesia brasileira hoje está consciente desse fato. É óbvio que nesse momento a crise política torna-se generalizada.
A constatação desta ruptura entre a burguesia e o sistema e da conseqüente precariedade em que este hoje se encontra não é, entretanto, óbvia. Depois de treze anos de domínio militar, somos facilmente tentados a acreditar na inexpugnabilidade desse domínio. E usamos para isto os mais variados raciocínios. Argumentamos, por exemplo, que os princípios democráticos da burguesia não são muito profundos — o que é correto. Nesses termos seria fácil à tecnoburocracia estatal recuperar o apoio da burguesia, comprando-a novamente através de medidas favoráveis à elevação da taxa de lucros. Ora, os dirigentes governamentais da área econômica não vêm tentando fazer outra coisa há dois anos, e no entanto sem êxito. Quando a redução relativa do excedente econômico torna-se embutida no modelo econômico, recuperar o apoio da burguesia torna-se muito difícil. O problema se agrava através da perda de credibilidade do Governo. E a crise ganha então força própria, cuja gravidade só uma crença sem limites na autonomia da tecnoburocracia militar pode negar.
Vivemos, portanto, um momento de grave crise de legitimidade. Esta crise teve início, no plano político, com o “não” que os trabalhadores e as camadas médias deram à política autoritária e concentradora de renda do Estado, nas eleições de 1974. Ganhou profundidade quando a burguesia rompeu politicamente com a tecnoburocracia estatal, levando ao colapso o modelo de tripé e deixando perplexos seus associados multinacionais, que nesse momento não sabem por que lado optar.
As conseqüências dessa crise de legitimidade não são previsíveis. Não há dúvida, entretanto, de que hoje toda a sociedade civil aspira por liberdades democráticas. Este não é apenas um slogan das manifestações estudantis, mas uma aspiração profunda da grande maioria dos que participam do processo político brasileiro, ou seja, da sociedade civil. E quando a sociedade civil, da qual a burguesia é o elemento dominante, une-se em torno da idéia de redemocratização, torna-se difícil imaginar que essa redemocratização não venha. Esta redemocratização só não virá se estivermos enganados em relação à posição que a burguesia vem assumindo nestes últimos dois ou três anos, e principalmente nestes últimos meses, ou se a burguesia não for mais a classe dominante. Ora, não creio que esteja muito enganado em relação à ruptura; e não tenho dúvida alguma sobre qual seja a classe dominante neste país. Há boas razões, portanto, para se acreditar em um processo de redemocratização à vista, à medida que se aprofunda a crise política do atual sistema. Admito que se trata de uma perspectiva otimista, mas o otimismo nem sempre é infundado.
A redemocratização prevista será obviamente um patamar para novas e necessárias lutas políticas. São essas lutas que ainda atemorizam a burguesia impedindo-a de tomar atitudes mais radicais. Mas entre o presente inseguro e atemorizador, no ventre de um regime tecnoburocrático autoritário, e um futuro também inseguro, mas no seio de um regime democrático, em que a burguesia pode esperar ser ainda a força política dominante, a opção parece óbvia. Por um momento, os interesses da burguesia e dos trabalhadores se confundem em torno da idéia de redemocratização. Em seguida, surgirão novamente as contradições, mas então com uma possibilidade de solução institucional em termos mais abertos e democráticos. Da crise passamos para o otimismo, ainda que um otimismo burguês.