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Este seminário tem como tema as relações entre a cultura, entendida em sentido amplo, e a consolidação da democracia na América Latina. Não enfatiza, porém, o aspecto teórico do problema, visando, ao contrário, enfrentá-lo do ponto de vista de políticas públicas. Esta é uma agenda muito ampla. Entretanto, lendo com cuidado o documento que serviu de tema de referência para o trabalho que agora se inicia, vejo dois temas ou duas perguntas centrais: Primeiro, como enfrentar, na dimensão cultural (e educativa), dois problemas fundamentais da América Latina - a consolidação da democracia e a redução da pobreza e das desigualdades - em face ao fenômeno da globalização e à grande ênfase que as reformas orientadas para o ajuste fiscal e para o mercado vem recebendo nos últimos anos? Segundo, como criar um consenso em torno da importância da cultura e do seu financiamento para a democracia e a equidade no marco da globalização da economia, e de medidas ajuste fiscal e de reformas orientadas para o mercado? A primeira pergunta é fundamental. O risco, entretanto, que um seminário como este enfrenta, é de se concentrar na segunda questão. Caso isto ocorra, este seminário poderá perder grande parte de seu interesse. O que teremos será a volta ao tema central de todos as reuniões, congressos, seminários que tratam da cultura em suas relações com o Estado (ou e democracia) e o mercado: como obter maior apoio na sociedade e no Estado para a cultura. Não nego importância a esse tema, mas é preciso reconhecer que ele tem um vezo corporativo, por mais nobre que seja a causa da cultura. Não há dúvida quanto ao papel da cultura - e menos ainda quanto ao papel da educação - na consolidação da democracia, no desenvolvimento econômico e na redução das desigualdades. Não há dúvida quanto à necessidade de apoio à cultura. Mas conheço bem a tendência dos produtores culturais de estar sempre demandando mais atenção, mais verbas, mais apoio. Esta prática é legítima, mas não há nada mais esterilizante para um projeto como este do que concentrar-se neste tema. O problema, quando se discutem as políticas públicas em relação à cultura, não está em criar um consenso sobre a sua importância, mas em debater o que é necessário que ocorra a nível político para que a cultura possa efetivamente contribuir para a equidade e a consolidação da democracia. A questão central deste seminário, portanto, e como encontrar respostas para a primeira questão. Para responder a primeira pergunta é necessário analisá-la e desdobrá-la em algumas perguntas adicionais: Por que o ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado se tornaram dominantes? Qual a relação desse fenômeno com a globalização? Quais os efeitos perversos da globalização e das reformas orientadas para o mercado - em geral e particularmente na área da cultura? Existe a possibilidade (e a desejabilidade) de reverter a tendência à globalização, ou seja, ao domínio sem freios do mercado? Qual o papel da reforma ou da reconstrução do Estado nessa reversão? Qual a relação entre a reforma do Estado e ajuste fiscal e reformas orientadas para o mercado? A cultura pode, de um lado, contribuir para a reconstrução do Estado, e de outro, se beneficiará dessa reconstrução? São perguntas precisas mas de difícil resposta. Vou, entretanto, tentar respondê-las de forma telegráfica. O ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado tornaram-se dominantes porque o Estado entrou em crise nos anos 80: crise fiscal, crise do modo de intervenção, crise da forma burocrática de administrá-lo. Esta crise decorreu do crescimento excessivo e distorcido do Estado nos 50 anos anteriores. Por outro lado, a globalização - ou seja, o aumento dramático da competição a nível internacional em decorrência da enorme redução dos custos dos transportes e das comunicações - agravou a crise do Estado. A resposta a essa crise foi a crise da esquerda, o avanço das idéias neoliberais e a predominância das reformas orientadas para o mercado. A globalização tem como conseqüência o aumento da coordenação da economia pelo mercado e a correlata redução da coordenação da economia pelo Estado. As reformas orientadas para o mercado têm também como objetivo aumentar a coordenação pelo mercado, mas implicam necessariamente no enfraquecimento do Estado. Pelo contrário, podem fortalecê-lo, desde que não sejam dogmáticas - e portanto neoliberais - mas pragmáticas. O aumento do papel do mercado era necessário, dada a crise do Estado, mas seus efeitos são perversos em termos de equidade e de consolidação da democracia, e constituem uma ameaça à uma cultura democrática. O mercado é bom alocador de recursos, mas é intrinsecamente concentrador de renda, ao privilegiar os setores sociais onde a oferta é menor do que a procura (os detentores de conhecimento técnico e organizacional) e os setores econômico com poder de mercado (as grandes empresas multinacionais). Por outro lado, a redução da cultura aos parâmetros exclusivos do mercado é uma ameaça à cultura. É preciso, entretanto, lembrar que a alternativa do financiamento exclusivo da cultura pelo Estado é ainda mais ameaçadora. A única forma de neutralizar esses efeitos perversos é reconstruir o Estado e redefinir de forma mais ampla o espaço público não-estatal. Só assim o mercado e a globalização poderão ser colocadas a serviço da democracia e da equidade e não contra elas. Para a reconstrução do Estado, entretanto, o ajuste fiscal é absolutamente essencial, e as reformas orientadas para o mercado são imprescindíveis, desde que realizadas com equilíbrio ou prudência. Reconstruir o Estado significa devolver-lhe saúde fiscal, significa rever seu papel ou suas formas de intervenção, significa reduzir seu papel de produtor de bens e serviços e aumentar seu papel de financiador dos mesmos. Reformar o Estado implica em aumentar a sua governabilidade - a capacidade do Estado de regular a sociedade ao mesmo tempo que seu governo tenha legitimidade, contando com o apoio dessa mesma sociedade - através da criação de instituições políticas que garantam que a vontade dos cidadãos e o interesse público (a ordem, a liberdade a equidade e o desenvolvimento) se traduzam nas políticas públicas. Observe-se, sobre isto, que é exatamente essa possibilidade que os neoliberais consideram impossível de ser atingida, a partir de sua concepção da natureza essencialmente egoísta da humanidade e da conseqüente inviabilidade da ação coletiva. Daí sua proposta do Estado Mínimo. Reformar ou reconstruir o Estado significa aumentar a governança do Estado - a capacidade do governo de transformar em realidade as políticas públicas de forma efetiva e eficiente - através do aumento da capacidade administrativa e financeira do Estado. Não basta, entretanto, reconstruir o Estado. Como o mercado tem limitações, o Estado também as tem. Por isso, para neutralizar os efeitos perversos da globalização, é preciso também ampliar o espaço público não-estatal. A ampliação do espaço público se faz não apenas através da defesa da coisa pública, da desprivatização do Estado, do combate ao rent seeking e à corrupção - uma tarefa essencial da democracia - mas também através do fortalecimento do espaço público não-estatal. Além da propriedade privada e da estatal, existe uma terceira forma de propriedade estratégica no capitalismo contemporâneo: a pública não-estatal. O espaço público não-estatal é o espaço do terceiro setor, das entidades sem fins lucrativos voltadas para o interesse público, das ONGs, da participação direta da sociedade na definição das políticas públicas. Não é o espaço das associações representativas da sociedade, que são importantes, mas particularistas, e permanentemente ameaçadas pelo corporativismo. O grande mérito do espaço público não-estatal é o da pluralidade e do seu caráter voluntário. O espaço público não-estatal é essencial para as atividades que envolvem economias externas, não podendo ser financiadas exclusivamente pelo mercado. No plano cultura a organizações públicas não-estatais têm um papel fundamental, já que a cultura envolve amplas economias externas. Em síntese, se o Estado for reconstruído, se ganhar governabilidade e governança, se suas funções forem revistas, e se o espaço público não-estatal ganhar um estatuto mais claro, a cultura receberá a atenção necessária e desempenhará o papel que dela se espera na redução das desigualdades e no consolidação da democracia na América Latina. Para que esse papel possa ser realizado, entretanto, é essencial discutir o problema da cultura democrática. A democracia não é apenas uma forma de governo mais avançada, não é apenas a única forma de governo compatível com a liberdade e a equidade. É também uma forma de cultura. As atividades culturais se beneficiam da democracia, ao mesmo tempo que a fortalecem, na medida que contribuem para a implantação de uma cultura democrática? Uma questão essencial é saber como as atividades culturais podem contribuir para uma cultura democrática. Cultura democrática que se consubstancia na opinião pública e no exercício do voto nas eleições. São duas estas contribuições: aumentar o nível de informação, e aumentar a capacidade de análise dos cidadãos, permitindo que sem transformem em verdadeiros cidadãos. O aumento da capacidade de análise é uma contribuição particularmente importante das atividades culturais. Isto se faz através não apenas do aumento da cultura crítica dos cidadãos em relação à corrupção, as injustiças - papel da cultura de esquerda -, mas também do aumento da sua cultura do contrato - em oposição à cultura paternalista -, da cultura da restrição econômica ou do trade off, em oposição à cultura populista, e da cultura da solidariedade e da ética, em oposição à cultura da defesa dos interesses individuais e corporativos. O paper de referência deste seminário afirma que a
cidadania na América Latina se redefine progressivamente em termos de sua identidade
consumidora, tornando-se imperioso trabalhar os níveis da cultura democrática
internalizados no imaginário social, sobretudo nos setores populares invadidos por
ideologias que reconfiguram sua identidade. Estou de pleno acordo com isto, mas é preciso
também reconhecer que se o avanço de ideologias neoliberais, radicalmente
individualistas, representam uma ameaça para a construção da cidadania na América
Latina, a velha cultura paternalista e populista também o é e merece igual crítica. ![]() |