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Dílson Funaro: Homem Público

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo, 14 abril 1989

Uma vez li um ensaio que muito me impressionou, de Lucien Lefevre, em que ele definia o que era o homem público, o homem de Estado, que ele distinguia com precisão do homem do Estado. Este aceita e legitima o Estado, aquele o põe em questão, criticando e se propondo a reformar as instituições políticas. Pois bem, Dílson Funaro foi antes de mais nada um homem público, um homem de Estado, um líder natural cuja vida foi sempre voltada para o público, para o político, para a gestão reformadora do Estado, para o governo da Nação. E sempre com um sentido de missão, de tarefa a cumprir, em que as qualidades pessoais e a vontade de poder eram apenas instrumentos de uma tarefa maior de construção ou de salvação nacional.  A morte de Dílson Funaro é uma óbvia perda para este país, especialmente em um momento em que suas elites estão tão desorientadas, incapazes de definir um projeto nacional em meio a uma crise econômica e política que se arrasta e se aprofunda há dez anos.
Conheci Dílson ainda quando éramos muito jovens, mas só me tornei seu amigo nos anos setenta, através de um grande amigo comum, Eduardo Suplicy. Dílson era casado com uma das irmãs de Eduardo, Ana Maria, e nos encontrávamos geralmente na casa de Eduardo, para longas conversas sobre a economia. Dílson raramente brincava ou sorria. Estava sempre sério, discutindo projetos para o desenvolvimento, criticando a política econômica monetarista, exigindo uma distribuição de renda mais justa. Suas duas indignações permanentes eram contra as altas taxas de juros que oneravam o investimento produtivo privado - naquele tempo o Estado não era ainda o grande endividado - e contra todos os tipos de especulação.
Estivemos muito próximos em 1980, no primeiro ano de funcionamento do Conselho de Economia da FIESP, e saímos juntos no final do ano por não concordar com o decidido apoio que a então presidência da FIESP dava à política econômica do governo. Engenheiro e notável empresário, seus conhecimentos de teoria econômica eram necessariamente limitados. Possuía, entretanto, um conhecimento prático da economia brasileira, que compensava amplamente essa deficiência. Sua visão da teoria econômica refletia, em boa parte, os acertos e os erros de uma espécie de senso comum progressista e moderadamente nacionalista que sempre dominou amplos setores da sociedade brasileira.
Reencontramo-nos novamente, eu já no governo Montoro, ele na iniciativa privada e agora muito próximo a Ulysses Guimarães, na luta pela redemocratização e a eleição de Tancredo Neves. A presidência do BNDES e depois o Ministério da Fazenda foram dois postos aos quais ascendeu em seguida muito naturalmente, sempre com o meu mais decidido apoio.
No Ministério da Fazenda Dílson encontrava finalmente a oportunidade de tornar realidade a sua própria missão de homem público. E houve dois momentos altos, em que a coragem que caracteriza os verdadeiros homens de Estado foi demonstrada: o Plano Cruzado, em janeiro de 1986, e a moratória, em fevereiro de 1987. O Plano Cruzado afinal falhou, e alguma responsabilidade ele teve também por isso. Mas certamente não a maior responsabilidade. O primeiro erro da administração do plano foi querer estender o congelamento indefinidamente. Dílson, três meses depois do decreto quis começar o descongelamento. Foi impedido. O grande problema do Cruzado foi não lograr reduzir o déficit público. Dílson, em julho de 1986, tentou um empréstimo compulsório, que afinal foi reduzido a cerca de um terço pelo Planalto. Finalmente, quando o Plano Cruzado entrou em crise e as reservas brasileiras diminuíram perigosamente, houve a decisão da moratória. O ideal seria que ela tivesse sido decretada antes, quando a situação cambial era melhor. Uma moratória é plenamente justificada, necessária mesmo, como instrumento de negociação. Mas, sem dúvida, foi necessário coragem para decretá-la em um país em que o medo dos credores é uma constante. E essa moratória foi essencial para que eu - que, quis o destino, vim a substituir Dílson no Ministério, pudesse fazer as propostas apoiado por minha equipe e negociar com altaneria como comecei a negociar com os bancos e principalmente com os bancos credores.
De volta à vida privada Dílson Funaro continuou antes de mais nada um homem público. Constatou o comprometimento do seu partido, o PMDB, com um governo que - como foi ficando evidente a partir da decisão do Presidente Sarney pelos cinco anos, em maio de 1987 - se revelou incapaz de cumprir os compromissos estabelecidos com a sociedade brasileira quando se formou o grande pacto social que elegeu Tancredo para a presidência. Por isso tomou a decisão de sair do PMDB para ajudar a fundar o PSDB. Agora sua missão teve que ser interrompida. Fica, entretanto, seu testemunho de fé neste país, no seu povo, nos seus companheiros empresários, nos políticos que como ele entendem a política como a ação de homens públicos, de homens de Estado.