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A Utopia para Caio Graco


Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo, 9 de julho de 1992

Se me perguntassem qual foi o traço fundamental que distinguiu Caio Graco Prado enquanto homem público, enquanto pessoa preocupada com os destinos do Brasil e do mundo, eu diria sem hesitação: a visão utópica. Caio Graco possuía aquele otimismo essencial que define os verdadeiros utópicos. Ele acreditava em um mundo melhor e estava permanentemente na sua busca.
Manheim distinguiu o pensamento ideológico do pensamento utópico. O pensamento ideológico visa justificar o mundo, o utópico, transforma-lo. Caio sempre quis transformar o mundo através de suas palavras e de suas edições na Brasiliense. Filho de um grande pensador marxista, dele herdou uma perspectiva materialista e socialista. Mas se o socialismo era profundo e utópico em Caio, o materialismo era superficial. A revolução, para ele, não começaria necessariamente pela mudança da forma de propriedade dos meios de produção, não era um problema essencialmente econômico e social. Era também, senão principalmente, um problema de revolução pessoal interna, de mudança profunda na forma de ver o mundo, e do surgimento de uma contracultura em substituição à cultura dominante.
Caio publicou quase todos os meus livros, mas aquele que mais o entusiasmou não foi publicado por ele e sim pela Vozes. Chama-se As Revoluções Utópicas.
Meu último encontro com Caio aconteceu uma semana antes de sua morte. Conversamos uma boa meia hora, em meio a uma festa. Contei-lhe sobre o ensaio que acabara de ler, de Isaiah Berlin, “The pursuit of the ideal”. Eu ficara impressionado com a bela argumentação de Berlin contra a utopia. Nesse ensaio o pensador liberal inglês nos lembra que o mundo é essencialmente contraditório. E que é nessa contradição que está a liberdade. Para ele “a noção de um todo perfeito, de uma solução última, na qual todas as coisas boas coexistem, não me parece apenas inatingível - isto é um truísmo - mas conceitualmente incoerente... Nós estamos destinados a escolher, e cada escolha implica em uma perda irreparável” (In The Crooket Nature of Mankind, Nova York: Handon House, 1992).
Caio ouviu com atenção, mas não hesitou em discordar. Toda a sua vida havia sido voltada para a utopia. Todo o seu trabalho como editor e como ativo participante dos problemas políticos do seu país havia sido dedicado a transformar o mundo em função de um ideal. Este ideal não poderia ser abandonado em nome nem do realismo nem do liberalismo.
Pessoalmente, eu também sempre me senti extremamente atraído pela visão utópica do mundo. A utopia não é o impossível, é uma meta a ser um dia atingida e o processo que leva a essa meta. O ideal iluminista de um mundo cada vez mais dominado pela razão, de um mundo em que o progresso é algo de real não apenas no plano econômico mas também político e social, sempre me atraiu. Não podia, entretanto, deixar de dar uma certa razão a Berlin. É muito fácil, em nome da utopia, em nome da sociedade perfeita, racional, criar-se uma sociedade autoritária. O primeiro grande utópico foi Platão, que imaginou uma sociedade perfeita governada autoritariamente por filósofos. É contraditório desejar uma sociedade perfeita e, ao mesmo tempo, valorizar o diálogo e a contradição.
Creio, entretanto, que existe uma solução para esta contradição. Basta pensar que a utopia não é um fim, mas um movimento. O que importa não é alcançar a sociedade ideal, é caminhar para ela. O importante é o processo de construir essa sociedade, não ela mesma, já que a sociedade ideal não existe nem nunca existirá. Sempre existirão os problemas e as contradições. Cada vez que resolvemos um problema, surge um outro. As contradições estão sempre presentes. O importante, entretanto, é que se tratem de novas e mais elevadas contradições, porque as antigas foram resolvidas.
Mas, neste caso, qual é a diferença entre o pensamento utópico e o realista? O realista não deseja também um mundo melhor? Sem dúvida. A diferença, entretanto, é clara. Para o pensamento utópico, os problemas são resolvidos dia a dia em função de um ideal de longo prazo. O pensamento utópico aceita também compromissos, concessões, mas não perde jamais de vista o bem comum. Ele sabe que as esferas da política e da moral são diferentes, irredutíveis uma a outra no curto prazo, mas a longo prazo só existe uma esfera e esta é a da moral, é a da solidariedade entre os homens, é a da busca constante do bem comum, é a esfera da utopia. Já para o realista, os objetivos são percebidos mais a curto prazo. O poder goza de uma autonomia muito maior em relação à moral. É por isso que se atribui um certo cinismo aos realistas.
Esta problemática pode parecer muito abstrata, mas não é. Nesse mesmo último diálogo, conversamos sobre a crise política que hoje se abate sobre o Brasil. Caio, como todos nós, estava indignado. E não estava disposto a fazer compromissos, nem a ser “realista”. Os realistas, hoje, podem também estar indignados com os escândalos, mas afirmam: nada vai acontecer, as provas serão insuficientes, o processo de impeachment é inviável, a sociedade acabará se conformando e empurrando com a barriga esta crise. Caio Graco não estava de acordo. A utopia é um processo, mas um processo que não abdica dos seus fins maiores. Se todos dissermos que nada vai acontecer, que a corrupção não será punida, esta será uma profecia auto-realizante. E o Brasil terá perdido uma extraordinária oportunidade de dar mais um passo no sentido da utopia que nosso amigo Caio Graco Prado tanto buscava.