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Esquerda Nova e Realista
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de São
Paulo, Mais! 30/01/2000
A Terceira Via é uma proposta inglesa para a Nova
Esquerda. Eu não concordo com todas as propostas de Tony Blair, Anthony Giddens, e do
conjunto de políticos e intelectuais que em torno deles se reuniram para pensar uma
sociedade mais justa e mais moderna nos quadros do capitalismo contemporâneo. Posso não
concordar, mas reconheço que são propostas generosas e realistas. Já na crítica que
Marilena Chauí lhes endereçou em Mais! vejo a mesma generosidade, mas pouca
viabilidade.
Por outro lado, quando você relaciona as reuniões de
Florença e de Seattle, e vê na última a vitória dos excluídos, seu engano é grave.
Ali, sim, havia um conflito entre os países ricos, que em Florença tinham cinco
representantes, e os países em desenvolvimento, em Florença apenas representados pelo
Brasil. Nós, como a China, a Índia, a Argentina, deveríamos querer comércio mais
livre, enquanto os Estados Unidos e a Europa, apesar de toda a sua retórica, querem, de
fato, o contrário. Os Estados Unidos através dos seus sindicatos de trabalhadores e dos
seus setores industriais ineficientes, e a Europa, através também de seus setores
industriais ineficientes somados à sua agricultura muito ineficiente, lutaram por um
comércio menos livre, a não ser nos serviços. Os países em desenvolvimento não
lograram perceber este fato, como também entendem que a globalização negativa não é a
comercial mas a financeira. Hoje a razão externa pela qual nos mantemos quase-estagnados
enquanto os países avançados continuam a se desenvolver a taxas elevadas não está no
comércio mas no endividamento internacional. A estratégia alucinada de crescimento com
endividamento provoca a valorização do câmbio e leva mais ao desperdício de divisas
com consumo do que ao investimento. O saldo final é uma dívida a ser paga a taxas de
juros elevadas.
Marilena, vou discutir estes dois temas com você. Nada é
mais necessário hoje no Brasil do que o debate, e seu artigo no Mais!
"Fantasias da Terceira Via", oferece-me esta oportunidade. Se pretendesse ser
apenas uma crítica às idéias de Tony Giddens, como em boa parte dele parece ser, eu
não me sentiria atraído ao debate. Embora Giddens seja um notável sociólogo, que
respeito, não tenho procuração para defendê-lo, nem concordo com todas suas idéias. A
ambição de Marilena, entretanto, é maior. Ela começa por criticar o "lirismo
pastoral" da reunião de chefes de governo social-democratas de 21 de novembro, em
Florença. Reunião que ela, de pronto, identifica como uma reunião da Terceira Via,
para, em seguida, baseada antes em um livro de Giddens do que nos debates que lá
ocorreram mas, passar a criticar radicalmente a Nova Social Democracia ou a Nova Esquerda.
A mensagem da Terceira Via, segundo a "tradução" de Marilena, seria
simplesmente a seguinte: "excluída a luta de classes e a igualdade
sócio-econômica, o Estado não precisa enfrentar o perigoso problema da distribuição
da renda e pode resolver suas dificuldades pela privatização dos direitos sociais,
transformados em serviços sociais regidos pela lógica do mercado".
Ora, aquela reunião histórica, na qual pela primeira vez
se reuniram para discutir valores e idéias políticas, os chefes de governo
social-democratas de seis dos dez principais países do mundo em termos de PIB (ou, o que
é mais impressionante, os cinco chefes de governo social-democratas dos seis maiores
países), não pode ser reduzida dessa forma. Excluamos o presidente brasileiro, para
evitarmos partidarismos. Será razoável afirmar que Bill Clinton, Tony Blair, Gerhard
Schröder, Daniel Jospin e Massimo DAlema, que em seus países foram eleitos
opondo-se aos candidatos conservadores, podem ser dessa forma desclassificados? Teriam
eliminado de suas mentes a luta de classes, e deixado de se reconhecer a existências de
graves desigualdades, e portanto entenderiam desnecessário preocupar-se com
distribuição de renda? Os poucos problemas que ainda sobrassem esses senhores
acreditariam poder resolvê-los cancelando os direitos sociais e reduzindo os serviços
sociais de educação e saúde à lógica do mercado? É aceitável essa caricatura desse
cinco líderes políticos? Uma caricatura, que, se Marilena for lógica, deverá também
se estender aos seus milhões de eleitores, que os elegeram em nome de suas propostas de
lutar pela democracia e pela justiça social.
Do seminário de Florença Marilena cita uma frase de Bill
Clinton: "desejamos uma economia de mercado, mas não os valores da sociedade de
mercado". Essa frase, segundo ela, seria central para a Terceira Via. Ora, Clinton,
realmente disse isto, mas não se esqueceu de citar seu autor, Daniel Jospin. Desde quando
o primeiro ministro pode ser identificado com a Terceira Via? E desde quando é legítimo
afirmar que o seminário de Florença era uma reunião da Terceira Via? Esta era a idéia
original de Blair, mas os demais chefes de governo recusaram-na. Em inglês, o seminário
ficou denominado "Progressive Governance in the 21rst Century", e, em
italiano, "Il Reformismo nel XXI Siglo".
Por que recusaram? Não porque haja uma discordância
essencial, mas porque a Terceira Via é o nome que a Nova Esquerda ou a Nova
Social-Democracia ou a Social Democracia Moderna assumiu na Grã-Bretanha. Ora, cada país
tem suas próprias peculiaridades no plano ideológico e programático.
Daniel Jospin, que entre os chefes de governo presentes,
é o mais contrário a essa expressão, escreveu em La Repubblica, o grande jornal
social-democrata italiano, três dias antes da reunião, um artigo em que dizia: "Se
a Terceira Via é uma alternativa entre a social-democracia e o neoliberalismo, não estou
nessa via. Mas se for apenas a forma assumida pela social democracia moderna na
Grã-Bretanha, nada tenho a me opor". Opor-se-ia se a Terceira Via pretendesse
substituir a social-democracia. Não se opõe no caso alternativo porque o Partido
Socialista francês, como todos os demais partidos social-democratas no poder, é um
partido que adota as idéias da Nova Esquerda. Sua preocupação, porém, era justificada,
porque alguns dos formuladores da Terceira Via a vêem como não mais social-democrata e
de esquerda, mas apenas como progressista. São, entretanto, minoria. Dois dias depois, no
mesmo jornal, para que não restassem dúvidas, Blair começou seu artigo declarando-se
social-democrata de centro-esquerda. Não era uma resposta explícita a Jospin, mas era
clara. E o próprio Bill Clinton, presidente de um país em que o Partido Democrata nunca
se autodenominou de esquerda mas progressista ou "liberal" no sentido americano,
afirmou, em sua última intervenção no seminário de Florença, que "nós,
Democratas, que no espectro político americano nos situamos à esquerda
"
O que há de comum entre esses partidos da Nova Esquerda?
Certamente não é a "tradução" de Marilena, a não ser que desclassifiquemos
de uma penada eleitores e políticos progressistas nos países avançados. A Nova Esquerda
é a terceira grande forma pela qual a esquerda se apresenta no mundo. Primeiro, foi a
esquerda revolucionária, da luta de classes, de Marx, Lenin e Trotsky. Depois foi a
esquerda reformista e do Estado do Bem-Estar, de Bernstein, Beveridge, e Léon Blum, que
continuava a afirmar a luta de classes, pretendia chegar ao socialismo através da
democracia, do gradual aumento da participação do Estado na produção, da garantia dos
direitos sociais, e que, na sua forma mais subdesenvolvida, adotou como política
macroeconômica um keynesianismo populista baseado em déficits públicos crônicos que
certamente Keynes repudiaria com horror. Finalmente temos a Nova Esquerda de Olaf Palm,
Helmut Schmidt e Felipe González, que, sendo realista e reconhecendo o crescimento da
classe média e as limitações do planejamento econômico, amplia sua base de apoio
social que não pode mais limitar-se ao proletariado, e afirma a possibilidade de se
lograr uma sociedade mais democrática e mais justa nos quadros de uma economia de
mercado, desde que este seja devidamente corrigido ou regulado pelo Estado.
A Nova Esquerda, portanto, não é tão nova assim.
Certamente, é muito mais antiga do que a Terceira Via inglesa. Se desconsiderarmos a
experiência escandinava, que é peculiar, sua primeira expressão ocorreu na Alemanha,
nos anos 70, logo seguida pela espanhola do início dos anos 80. Depois temos a França de
Mitterand, Delors e Rocard, a partir de 1983. Mitterand ainda se elegeu em 1980 com um
programa de nacionalizações da velha esquerda, mas depois de dois anos verificou a
inviabilidade desse caminho, e reconheceu a importância do mercado e das restrições
econômicas. Antes da Inglaterra temos, ainda, os Novos Democratas, nos Estados Unidos,
com a eleição de Bill Clinton em 1992. Enquanto isso, o Partido Trabalhista britânico
amargava 17 anos fora do poder. Foi só em 1997 que Tony Blair, depois de renovar seu
partido, conseguiu recuperar o poder para a esquerda com um discurso baseado no Novo
Trabalhismo e na Terceira Via.
A novidade de Blair e da Terceira Via estava no fato de
que, pela primeira vez, políticos e intelectuais de esquerda desenvolviam de forma
sistemática uma justificação ideológica e um programa coerente para a Nova Esquerda.
Antes a Nova Esquerda ganhava eleições e chegava ao poder, mas as políticas que
adotava, de disciplina fiscal e de respeito às leis do mercado, eram vistas como
conseqüência antes das restrições econômicas do que de uma escolha. Blair chamou um
conjunto de notáveis intelectuais, entre os quais o mais importante foi Tony Giddens,
para definir os novos valores e as novas propostas. A Nova Esquerda ganha afinal
consistência ideológica, e torna-se, também, um bom tema de debate.
A Nova Esquerda não nega a diferença entre esquerda e
direita, ao contrário do que afirma Marilena. De esquerda continuam sendo os partidos que
estão dispostos a arriscar a ordem em nome da justiça, enquanto de direita continuam
aqueles que priorizam sempre a ordem em relação à justiça. Justiça social não é uma
igualdade econômica pura simples, que é impossível, mas uma igualdade de oportunidade,
preservando-se, especialmente, a igualdade de oportunidade nas áreas básicas da
educação e da saúde. Não se pretende eliminar a universalidade da educação básica e
da saúde, que devem ser integralmente financiadas pelo Estado, mas se propõe que a
prestação dos serviços seja feita cada vez mais feita por entidades públicas
não-estatais, de forma competitiva. A solidariedade continua um valor maior a ser
alcançado e preservado, mas não se ignora a necessidade de um individualismo
responsável. O mercado é visto como um e eficiente alocador de recursos e como um mau
distribuidor de renda. Por isso o Estado tem um papel secundário mais efetivo nas
políticas industriais, e um papel fundamental na distribuição. Reconhece-se que a
moral, particularmente a sexual, passou por profundas transformações, mas se afirma a
necessidade de revalorizar a família. Em relação ao crime, declara-se que não basta
reconhecer e atacar suas causas sociais, é preciso também preveni-lo com policiamento, e
puni-lo com severidade.
É com essa mensagem que a Nova Esquerda tem vencido
eleições nos países avançados. Hoje o neoliberalismo, que fracassou em suas promessas,
está em franco declínio, e a grande maioria dos países ricos tem governos
social-democratas. Fará essa mensagem sentido para países em desenvolvimento como o
Brasil? Sem dúvida, desde que o apoio à globalização não seja tão indiscriminado
como acontece com os países ricos. Essa atitude favorável sem restrições à
globalização está especialmente presente na Terceira Via inglesa e na Nova Democracia
americana; mas é comum a todos os países desenvolvidos Eles já construíram seus
respectivos Estados Nacionais, nós não. Marilena tem razão, portanto, quando critica a
Terceira Via por pretender reduzir a nação a um dado cultural. Não, ela é um dado
político fundamental, do qual, aliás, os governantes dos países ricos, sejam eles de
esquerda ou de direita, não têm qualquer dúvida quando se trata de defender seus
interesses nacionais.
Os países ricos já alcançaram um nível de acumulação
de capital que lhes permite adotar um discurso global. Na verdade, ainda que falem muito
em comércio livre, estão permanentemente preocupados com a concorrência dos países em
desenvolvimento, e protegem seus mercados ferozmente quando é necessário. Aonde estão
tranqüilos é no setor financeiro, já que são credores, não devedores, e, portanto,
suas economias não estão vulneráveis à globalização financeira. Pelo contrário,
daí tiram lucros polpudos na forma de altíssimas taxas de juros que nos cobram.
Nós precisamos de uma Nova Esquerda, mas que seja mais
nacionalista. Que esteja mais preocupada em defender o trabalho e a empresa nacionais. Que
saiba que o capital se faz em casa, e que são suicidas as estratégias de desenvolvimento
baseadas em endividamento externo. Que os fluxos de capital de empréstimo, que
inicialmente se propõe a financiar o investimento nacional, acabam por causar a
valorização do câmbio, provocando o aumento artificial dos salários e o desperdício
de grande parte dos recursos caros emprestados em consumo: viagens de turismo e artigos
importados.
Marilena, entretanto, também resolve relacionar a
reunião de Florença com o fracasso da reunião da Organização Mundial do Comércio em
Seattle. Segundo a sabedoria convencional, ocorreu ali o fracasso da globalização, como
se globalização negativa fosse a comercial, quando na verdade é a financeira. Segundo
Marilena, "é notável que a luta entre excluídos, que parecia acontecer apenas no
campo social nacional, ressurja com força máxima em Seattle". Ora, Marilena, o que
eu vi lá foi outra coisa. Foi a luta dos sindicatos e das ONGs dos países desenvolvidos,
principalmente dos Estados Unidos, contra liberalização comercial que os desproteja da
nossa competição do trabalho mais barato e da produção eficiente que existem no
Brasil, na Índia, na China. Foram os europeus protegendo suas agricultura contra a nossa
agricultura muito mais eficiente. E foram os países em desenvolvimento pasmem!
batendo palmas, porque nesse caso não sabem reconhecer seus interesses nacionais.
O comércio mundial livre, Marilena, é hoje muito mais
benéfico do que prejudicial a um país como o Brasil. Temos também que tomar cuidado
nesta área, mas o cuidado muito maior deve ser dedicado às finanças. Enquanto os
países em desenvolvimento, até os anos 60, não estavam endividados internacionalmente,
apresentavam taxas de crescimento satisfatórias. A quase-estagnação em que vivemos há
20 anos está diretamente relacionada com o nosso endividamento dos anos 70 que, nos anos
90, por incrível que pareça, repetiu-se. Errar é humano, perseverar no erro
No
entanto, quando os países em desenvolvimento confundem globalização negativa com
comércio, ao invés de identificarem-na com finanças internacionais, equivocam-se
grosseiramente e se aliam a seus adversários, aos protecionistas do mundo desenvolvido,
como aconteceu em Seattle.
Voltando à Nova Esquerda, Marilena. Precisamos de uma
esquerda viável. De uma esquerda que possa ganhar eleições e governar de acordo com
suas propostas. Por isso preocupa-me o vazio na alternativa que está subentendida em suas
críticas. Será possível governar bem países capitalistas sem reconhecer a importância
do interesse individual e do mercado? Será possível ganhar eleições com uma mensagem
só para os trabalhadores, excluindo a classe média? Liberdade não se confunde com
competição, mas ambas são necessárias, e não apenas a primeira, como você sugere.
Estou de acordo que há uma barbárie capitalista, mas não vejo alternativa para a
organização da produção no mundo atual senão através do mercado.
É por isso que o grande desafio dos socialistas modernos
é governar o capitalismo de forma mais competente e mais justa do que os capitalistas.
Alguma forma de socialismo de mercado poderá ser alcançada no futuro. Agora, porém,
quando a Nova Esquerda disputa eleições e assume governos, ela não o faz para
transformar o país em socialista em um breve espaço de tempo essa ilusão
voluntarista está descartada mas para aprofundar a democracia e promover uma maior
igualdade de oportunidade, e lograr melhores taxas de desenvolvimento econômico do que os
partidos conservadores. Esse era o tema de Florença. Um tema nada "lírico",
nada "pastoral", mas cheio de esperança, e realisticamente utópico.
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