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Rangel: um Mestre da Economia
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de S. Paulo, 7 de março de 1994
Brasil perdeu nesta
semana um dos seus maiores economistas. Ignácio Rangel era dotado de uma inteligência
penetrante e de uma poderosa imaginação, que lhe permitiram analisar de forma inovadora
a economia brasileira e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento da teoria
econômica. Eu conheci bem Ignácio Rangel, que foi meu mestre e amigo. Conheci-o desde a
segunda metade dos anos 50, quando li seus trabalhos sobre a capacidade ociosa e o
desenvolvimento, e assisti a suas conferências no ISEB. Depois, em 1963, quando publicou A Inflação Brasileira, li seu livro em um
seminário que então Delfim Netto organizava na Faculdade de Economia da USP. Delfim e
seus assistentes criticavam Rangel pela imprecisão de seus conceitos econômicos, sem ver
nele o grande economista auto-didata que naquele livro estava formulando uma
interpretação inovadora a inflação brasileira. Assim não percebiam o vigoroso
economista que, sem conhecer Kalecki, desenvolvia uma macroeconomia com as classes
sociais; muito menos viam que Rangel, com aquele livro, descobrira que a oferta de moeda
é antes endôgena do que exôgena, de forma que o Banco Central está longe de ter o
poder que se lhe atribui de controlar perfeitamente a oferta de moeda. Hoje, esta idéia
já foi adotada pelos economistas keynesianos, e cada vez mais a teoria econômica oficial
é obrigada a reconhecer que a economia tem uma dinâmica que lhe é própria, não se
submetendo facilmente às diretivas das autoridades econômicas.
Por outro lado,
Rangel desenvolveu então a "curva de Rangel", mostrando que a longo prazo, a
inflação tem uma relação inversa - ao invés de direta, como pretende a teoria
convencional - com o crescimento. Rangel demonstrou que no Brasil, desde os anos 50,
quanto maior o crescimento, menor a inflação, e vice-versa. Rangel nunca deu uma
explicação totalmente satisfatória para esse fato, mas está claro que isto acontece,
principalmente a médio prazo, na medida em que a inflação é um sintoma da crise, é um
mecanismo de defesa da economia contra a própria crise. No curto prazo, o excesso de
demanda pode provocar inflação, mas em um prazo mais longo o que eleva as taxas
inflacionárias é a incapacidade da economia de resolver adequadamente suas próprias
contradições.
Tornei-me amigo de
Ignácio Rangel nos anos 70. Com a Revolução de 1964 Rangel foi compulsoriamente
aposentado do BNDES. Por algum tempo permaneceu no ostracismo. Até que, em 1972, vem a
São Paulo participar da reunião da SBPC, e traz um artigo baseado na teoria dos ciclos
de Kondratieff. Nesse artigo, previa que em breve a economia mundial entraria em uma
grande crise, embora naquele momento no Brasil vivêssemos em ritmo de milagre, e no resto
do mundo as taxas de crescimento continuassem muito favoráveis. Lembro-me da
desconfiança que as idéias de Rangel provocaram nos economistas presentes. E no entanto,
um ano depois suas previsões se confirmavam. Nos últimos vinte anos, desde 1973, as
taxas de crescimento no primeiro mundo foram a metade do que foram nos vinte anos
anteriores.
Rangel sempre
pensou na economia como sendo um processo histórico, cíclico e dialético. A idéia de
que a economia tem uma dinâmica própria, determinada pelo mercado e pela tecnologia,
não podendo ser alterada ao bel-prazer dos formuladores de política econômica, foi
sempre um dos traços marcantes do pensamento de Rangel. A inflação não era para ele a
mera consequência de descontrole do gasto público, mas uma forma através da qual a
economia se defende da tendência cíclica à capacidade ociosa. Além disso, era o
resultado do poder monopolista das grandes empresas vededoras e compradoras, que
aumentavam suas margens e em seguida as mantinham rígidas, mesmo em caso de recessão.
Rangel foi formado
na escola estruturalista da CEPAL, onde dominava o pensamento de Raul Prebisch, Celso
Furtado, Anibal Pinto e Oswaldo Sunkel. Formado em Direito pela Universidade do Maranhão,
onde nasceu, seu único estudo formal de economia foi um curso, em meados dos anos 50, na
Comissão Econômica para América Latina. Isto não impediu, entretanto, que Rangel, da
mesma forma que criticava as interpretações ortodoxas (monestaristas e keynesianas) da
inflação, criticasse também as teorias estruturalistas, que julgava insuficientes.
Ignácio Rangel foi
sempre um homem de esquerda. Na sua juventudade foi comunista e marxista. Isto lhe custou
a prisão em 1937. Já no Rio de Janeiro, nos anos 40 e 50, tornou-se um keynesiano e um
cepalino desenvolvimentista, preocupado com o grande projeto nacional de industrializar o
Brasil. Para isto participou da fundação do ISEB, uma instituição que repensou o
Brasil de forma radial nos anos 50 e definiu seu grande projeto de desenvolvimento. No
Instituto Superior de Estudos Brasileiros Ignácio Rangel foi o grande economista,
enquanto Hélio Jaguaribe era o grande cientista político, e Guerreiro Ramos, o grande
sociólogo. Nesse instituto, do qual também participaram Cândido Mendes de Almeida,
Alvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier, Nelson Werneck Sodré, e, perifericamente, Celso
Furtado, reuniu-se um grande grupo de intelectuais nacionalistas - o Grupo de Itatiaia -
que formulou de forma coerente a crítica do modelo primário-exportador e da alienação
cultural das elites oligárquicas, semi-aristocráticas, ligadas à terra, ao mesmo tempo
que propunha a industrialização do país através de uma grande aliança política da
classe industrial burguesa nascente, da tecnoburocracia estatal orientada para o
desenvolviemnto, e dos trabalhadores urbanos. Rangel aceitou esse diagnóstico e essa
estratégia, cujo principal formulador fora Hélio Jaguaribe, mas acrescentou que a
aliança política industrializante só se tornaria realmente compreensivel se aos
industriais, aos burocratas e aos trabalhadores fosse acrescentada uma quarta classe, à
qual cabia a liderança política da coalisão: a "oligarquia substituidora de
importações", existente no Sul e no Nordeste. Getúlio Vargas - o grande líder
político do início da industralização brasileira - era, na verdade, um estancieiro, um
membro da oligarquia substituidora de importações.
Rangel, possuia,
aliás, uma concepção original da história brasileira: a teoria da "dualidade
básica" da economia e da socieade no Brasil. Uma dualidade que, através de um
processo cíclico de longa duração, levava o sócio menor de uma determinada fase
histórica a tornar-se o sócio maior na fase seguinte. A partir dos anos 30, a oligarquia
substituidora de importações tornara-se o sócio maior, enquanto a burguesia idustrial
assume o papel de socio menor. Depois da segunda guerra mundial, os industriais assumem o
papel de sócios maiores. Rangel, entretanto, não soube explicar porque, em 1964,
aceitaram tão facilmente a tutela da burocracia civil e militar. Também não soube dizer
porque, após o colaspo do regime militar, a burguesia industrial não se tornou, ao
contrário do que se esperav, a verdadeira classe dirigente do país.
Rangel aprendeu com
Marx, com Keynes, com Schumpter. Entretanto, como acontece com todo grande intelectual,
ele era antes de mais nada um homem livre, capaz de pensar por conta própria. Por isso
abandonou muito cedo o comunismo. Por isso nunca pode ser enquadrado como um típico
economista estruturalista, ou um típico economista keynesiano.
Rangel, além de
economista teórico que publicou muitos livros, foi um homem de ação. Foi um dos
principais assessores de Getúlio Vargas, especialmente em seu segundo governo, entre 1950
e 1954. Depois, foi economista do BNDES. Juntamente com seu grande amigo, há muito
falecido, Jesus Soares Pereira, teve um papel importante na criação das grandes empresas
estatais brasileiras, particularmente a Petrobrás e a Eletrobrás, que teriam um papel
tão decisio no desenvolvimento do Brasil.
Seu compromisso
fundamental era com o desenvolvimento do Brasil. Para alcançá-lo, não se deixava levar
por ideologismos de direita ou de esquerda. Para um país se desenvolver, o fundamental
era investir. E investimentos só podiam ser realizados, se financiados. Logo,
pragamaticamente, buscava saber como seria possível financiar o desenvolvimento. Em um
certo momento, esse financiamento pode ser feito a partir dos fundos de poupança forçada
do Estado. Estimulou essa forma de financiamento. Com a crise do início dos anos 60, essa
fonte começou a exaurir-se. Propôs, então, a Octávio Gouvea de Bulhões, então
Ministro da Fazenda, a correção monetária como uma estratégia alternativa. Em meados
dos anos 70, porém, a correção monetária começava a apresentar efeitos distorcivos,
ao mesmo tempo que a capacidade de poupança forçada do Estado revelava-se
definitivamente esgotada. Rangel volta a surpreender a todos ao ser o primeiro a propor a
privatização das empresas estatais, que ele ajudara a criar. Em 1978, no pós-fácio da
terceira edição de seu livro sobre a inflação, que eu o convenci a escrever, Rangel
diagnosticava a crise do Estado e propunha que, através de uma nova lei de concessão de
serviços públicos, o setor privado se responsabilizasse de forma crescente pelos
investimentos públicos de infra-estrutura.
Rangel era um homem
preocupado com a distribuição de renda. Mas o respeito às tendências endôgenas da
economia era nele dominante. Por isso, quando nos anos 50 e 60 a reforma agrária foi
transformada pela esquerda em uma condição sine qua non do desenvolvimento brasileiro,
Rangel discodou. Era pessoalmente favorável à reforma agrária, mas observava que esta,
que fora essencial nos países desenvolvidos para criar o mercado interno, não o era no
Brasil em 1950, quando a indústria contava com o mercado cativo originado na
substituição de importações. Hoje, quando a substituição de importações há muito
se esgotou, e a criação de um mercado de massas não é apenas uma questão de
humanidade, mas uma condição para a retomada sustentando do desenvolvimento uma vez
alcançada a establização, talvez Rangel revisasse sua análise e desse à reforma
agrária a importância estratégica que há 30 anos ela não tinha.
Ignácio Rangel
parte em um momento de grandes incertezas para o Brasil. Depopis de uma crise que já dura
catorze anos. Rangel, entretanto, era antes de mais nada um otimista. Que acreditava nas
potencialidades do Brasil. A inflação eram um sintoma de crise, mas como a crise é
cíclica, ela terá que ser superada, na medida em os recursos existentes nos setores com
cacidade ociosa sejam transferidos para os novos setores dinâmicos. Então um novo
padrão de financiamento dos desenvolvimento afinal se delineará. Rangel não teve tempo
de presenciá-lo, mas seus discípulos e amigos, que são muitos, não esquecerão seus
ensinamentos e sua inspiração.
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