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América Latina no Limiar do Século XXI
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Nueva Sociedad (Caracas)
Na primeira metade
dos anos 90 estamos assistindo, na América Latina, à progressiva superação da grande
crise dos anos 80. Esta crise, que começou com o uma crise da dívida externa, afinal se
revelou uma profunda crise do Estado. Se me perguntassem há dois anos qual a
característica fundamental do momento por que estava passando a América Latina, eu diria
que era a crise do Estado - a crise fiscal do Estado e a crise do seu modo de
intervenção, a substituição de importações. No final de 1994, entretanto, não tenha
dúvida em afirmar que já estamos em recuperação, que o pior da crise já passou, e que
a América Latina afinal retoma o desenvolvimento.
As perspectivas para
a América Latina são, portanto, positivas. Começa agora a fase ascendente de um ciclo
longo. Acredito nos ciclos de Kondratieff. A fase descendente do último ciclo começou em
torno de 1970. A reversão cíclica, que está agora começando, deverá durar cerca de 25
anos. Só se esgotará no início dos anos 20 do próximo século.
Isto não significa,
entretanto, que possamos descansar, esperando que o ciclo se cumpra. Nas sociedades
capitalistas existe um certo automatismo cíclico que vem do mercado. O puro voluntarismo
do tipo soviético é inviável a médio prazo. Mas existe, sem dúvida, um espaço de
decisão para as nações. E as decisões podem ser certas ou erradas. Podem promover ou
atrasar o desenvolvimento e a democracia.
A grande missão
econômica da América Latina hoje é reformar e reconstruir seu Estado. Isto já vem
sendo feito. O ajuste fiscal já realizado foi substancial, embora nesta matéria sempre
estejamos em falta. A liberalização comercial e a privatização foram outras reformas
do Estado que caminharam amplamente na região. O mesmo se diga da desregulação, embora
neste setor seja mais difícil medir, e novas regulamentações são necessárias,
principalmente depois da privatização de monopólios. Em alguns países, as reformas
foram feitas gradualmente. Foi o caso do Brasil e do México. Em outros casos, foram mais
violentas, como na Argentina e na Venezuela. Sempre que houve hiperinflação - sintoma de
crise fiscal limite - foram necessárias medidas radicais. Sem a hiperinflação, a
justificativa política para choques liberais enfraquecia-se. Foi o caso da Venezuela.
A grande missão
política da América Latina é hoje aprofundar ou aperfeiçoar seu sistema democrático.
Aqui, também, os progressos foram imensos. A crise econômica, no início dos anos 80,
ajudou a apressar a transição democrática de muitos países, em especial do Brasil e da
Argentina. Completada a transição, começaram as reformas e o ajuste fiscal. Mas nem por
isso a democracia não foi abalada, exceto no Peru. Na Venezuela, dada a violência das
reformas, a democracia também foi ameaçada, mas as instituições democráticas
venezuelanas revelaram-se mais fortes.
Há muito,
entretanto, a fazer em matéria de democracia. O controle democrático dos governantes,
tanto a nível do executivo quanto do legislativo e do judiciário, precisa aumentar. A
crítica do populismo, do clientelismo e do corporativismo - ou seja, das várias formas
anti-democrática de privatização do Estado - precisam ser aprofundadas. Esta é a
grande tarefa progressista, social-democrática, na América Latina.
Nesse processo, o
papel dos intelectuais é muito importante. Os intelectuais são cientistas e ideólogos.
Mas ideólogos de que, neste momento? Ideólogos de um velho nacional-desenvolvimentismo
que se esgotou? Ideólogos de um neoliberalismo utópico transplantado para nossas terras?
Sugiro que sejam ideólogos da reconstrução do Estado, para que este possa garantir a
educação e a saúde, a infra-estrutura e o desenvolvimento tecnológico e científico, e
do aprofundamento da democracia, que é a maneira mais garantia de reduzir os
privilégios. Sugiro que sejam ideólogos cuja bandeira seja a luta contra o rent-seeking,
contra a privatização do Estado, contra a obtenção de vantagens monopolísticas por
parte de empresários, burocratas, políticos. Ideólogos democráticos de um Estado a
serviço da sociedade e não de grupos.
O grande problema,
nesta tarefa, é o de que os intelectuais são eles próprios burocratas. Ou seja,
representam os interesses de uma das três classes que caracterizam o capitalismo moderno.
As outras duas são os capitalistas e os trabalhadores, que têm também seus intelectuais
orgânicos, geralmente recrutados dentro da burocracia ou classe média assalariada. O
desafio o intelectual é reconhecer e tentar estar acima desses condicionantes sociais. O
capitalismo precisa tanto de capitalistas quanto de burocratas e de trabalhadores. Nos
termos de uma ideologia democrática e progressista existe espaço para todos. Mas
ninguém pode ter direito a privilégios ou monopólios de qualquer natureza.
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