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A Reforma do Estado

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Correio Braziliense e O Globo, 11/01/95

O Brasil, neste últimos quinze anos, viveu uma grande crise econômica e política, cuja causa fundamental é clara: a grande crise do Estado: crise fiscal do Estado, crise do modo de intervenção do Estado na economia, crise do próprio aparelho estatal, definida pela desorganização e a desmoralização da burocracia estatal, que a onda conservadora, neoliberal, transformou na culpada por todos os males do país. Foram quinze anos de crise, mas, também, quinze anos de conscientização da existência da crise e de suas causas; quinze anos de reformas econômicas orientadas para o mercado - de ajuste fiscal, de liberalização comercial, de desregulação da economia, de privatização; e, principalmente, quinze anos de busca de uma síntese social-democrática e pragmática, entre o velo nacional-desenvolvimentismo e o novo neoliberalismo.
1994 foi afinal o ano da grande virada; foi o sinal do fim da crise econômica, com o êxito do Plano Real; foi o marco da superação da crise política, com e eleição de Fernando Henrique, no bojo de um grande acordo nacional. Se a causa principal da crise foi a crise do Estado, a tarefa fundamental que inspirará o novo governo está clara: a reforma e a reconstrução do Estado.
São três as reformas do Estado: (1) a reforma fiscal do Estado, o ajuste fiscal profundo que, além de assegurar a estabilização, viabilizando a substituição da âncora cambial pela âncora monetária, restabeleça a poupança pública e assim devolva ao Estado a capacidade de promover o desenvolvimento econômico e social; (2) a reforma da própria estratégia de desenvolvimento econômico e social do Estado, privilegiando, no desenvolvimento econômico, o papel do mercado, e no desenvolvimento social, o papel do próprio Estado em parceria com a sociedade civil; (3) e, finalmente, a reforma do aparelho do Estado e da sua burocracia.
Quais serão os princípios que nortearão esta última tarefa? São poucos e simples. Em primeiro lugar, é preciso unificar os mercados de trabalho no Brasil. É preciso reduzir o fosso existente entre o mercado de trabalho público e o mercado de trabalho privado. Enquanto este, com um leque salarial amplo e a inexistência de estabilidade no emprego, estimula o trabalho e a produtividade; o leque reduzido de salários e a estabilidade excessiva dos funcionários é um fator decisivo da baixa produtividade do setor público. O objetivo da reforma só pode ser valorizar o funcionalismo, aumentar a sua produtividade, premiar mais adequadamente os mais competentes, e aumentar o nível de sua remuneração. Hoje o funcionalismo público vive o círculo vicioso da estabilidade, a ineficiência e a baixa remuneração.
A estabilidade deve ser compreendida não apenas como um direito dos funcionários, mas principalmente como uma defesa do Estado contra os poderosos que, sentindo seus interesses ameaçados pelos servidores públicos zelosos de sua função pública, logram sua demissão. Entendida a estabilidade segundo esta perspectiva, ela se justifica para as carreiras especificas de Estado. Como uma forma de perpetuar a ineficiência e a baixa remuneração dos funcionários em geral, não.
Em segundo lugar, é preciso criar ou consolidar carreiras de altos administradores públicos, com formação em nível de pós-graduação, que sejam efetivamente bem pagos. E, ao mesmo tempo, reservar, para esses administradores, os principais cargos de direção administrativa do Estado brasileiro. Quando examinamos os salários do setor público em comparação com os salários do setor privado, verificamos que os salários dos agentes administrativos são iguais ou maiores do que os do setor privado, enquanto que os salários dos gerentes públicos são muito menores.
Em terceiro lugar, é preciso completar o processo de descentralização administrativa para os estados e municípios, que a Constituição de 1988 estabeleceu, transferindo para eles atribuições que ainda permanecem sob responsabilidade federal. Temos o federalismo fiscal, precisamos do federalismo das atribuições.
Em quarto lugar, é preciso é preciso rever a própria noção de como deve funcionar e ser controlado o aparelho estatal. As modernas teorias administrativas, e a prática das grandes empresas que passaram por profundos processos de restruturação nos últimos anos, abandonaram o princípio do hierarquia formal, e cada vez mais adotam os princípios da descentralização, da atribuição de responsabilidade a gestores que se pressupõem competentes, e do controle por resultados. A administração pública tradicional estava baseada na hierarquia rígida e nos controles formais rigorosos. Dessa forma podia-se evitar a corrupção generalizada, mas a um custo de enorme eficiência. Hoje, a teoria moderna da administração tanto pública quanto privada busca limitar a organização burocrática central a um núcleo o menor possível de gestores que se coordenam com base no princípio da cooperação ao invés do princípio do hierarquia e do regulamento. Fora desse núcleo burocrático temos os trabalhadores, organizados em células de produção e controlados por resultados, e o setor terceirizado.
Em quinto lugar, é necessário reduzir o núcleo do próprio aparelho do Estado. Para isto, entretanto, a arma principal não é apenas a da privatização. Esta é fundamental para transferir para o setor privado as atividades produtivas voltadas para o mercado. Há uma segunda arma, que é a do desenvolvimento das organizações públicas não-estatais, das organizações voltadas para o interesse público, que não visam o lucro nem agem exclusivamente segundo os critérios de mercado. No Brasil é comum pensarmos que as organizações ou são estatais ou são privadas. Na verdade podem também ser públicas mas não-estatais. Estas são especialmente necessárias nas áreas de educação, da saúde, da cultura, das obras sociais e da proteção ao meio ambiente. Não é possível limitar as atividades dessas áreas ao mercado, mas também não faz sentido separá-la totalmente do mercado e colocá-la dentro do Estado. Nos países desenvolvidos um número crescente de escolas, de hospitais, de museus são organizações públicas não-estatais. São fundações privadas, que recebem recursos do Estado, mas são autônomas em relação a ele. Que buscam recursos na sociedade, a qual servem. Que se inserem no mercado sem perder seu caráter público.
Estão aí os princípios do que espero constituam um programa de trabalho para minha gestão no Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado. Princípios simples, mas princípios cuja implementação enfrentará obstáculos imensos. Estes obstáculos terão origem não apenas nos interesses corporativos reais, mas também em interesses fictícios - em idéias e instituições velhas e superadas, que, de fato, não atendem aos interesses a médio prazo dos funcionários públicos e dos políticos que os defendem.