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A Estabilidade Desejada
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Jornal do
Brasil, 22/01/95
A estabilidade desejada para o setor público é flexível,
defendendo o Estado e seus funcionários contra os poderosos e os corporativistas. Já a
estabilidade rígida prevista na Constituição de 1988 é um obstáculo fundamental à
reforma do Estado e à consolidação do Plano Real. Não é possível haver uma
administração pública eficiente e moderna quando seus dirigentes não têm condições
de exigir que o trabalho seja executado com competência e disposição nem meios de
adequar os quadros de funcionários às necessidades do trabalho a ser executado.
A estabilidade dos trabalhadores do setor privado foi há muito
flexibilizada porque se constituía em um empecilho intransponível a uma administração
moderna das empresas. Enquanto não ocorrer o mesmo com o setor público, será igualmente
impossível uma administração eficiente da coisa pública.
O argumento a favor da estabilidade dos servidores das carreiras de
Estado, como juizes, promotores, procuradores, delegados, fiscais e militares é simples.
Nesses casos a estabilidade é uma defesa do Estado e da função pública contra aqueles
que podem se sentir prejudicados pelas decisões desses altos servidores e têm poder para
lograr sua demissão. O custo dessa estabilidade, por sua vez, é pequeno, já que o
número de funcionários nestas condições é reduzido. Por outro lado, estas carreiras
são constituídas por servidores qualificados, que, em parte, se auto-controlam, e que,
em qualquer hipótese, são facilmente controláveis pelos seus pares e superiores.
Já o argumento a favor da estabilidade indiscriminada para todos
os funcionários é insubsistente. Há um velho argumento: dessa forma se evitaria que nas
mudanças de governo houvesse a "derrubada", ou seja, a substituição em massa
dos funcionários existentes por adeptos do partido político vitorioso. De fato, isto
ocorria no Império, e pode ainda ocorrer em um ou outro estado da federação ou em
município muito subdesenvolvido. De um modo geral, entretanto, essa é uma prática
superada e inviável no sistema público brasileiro. Inviável e caída em desuso. Tanto
assim que não ocorreram demissões em massa em grande número de estados quando houve, em
1983, a mudança do regime militar para o civil, não ocorreu também em 1985, quando a
mesma mudança ocorreu a nível federal. Tanto em 1983 quanto em 1985 havia ainda um
enorme número de funcionários celetistas, não-estáveis.
Em compensação, o prejuízo causado à administração pública
pela estabilidade inflexível e indiscriminada é enorme. Em cada ministério, em cada
repartição da administração pública direta, em cada fundação ou autarquia, quando
pergunto quantos são os funcionários ali lotados e quantos são aqueles que de fato
trabalham com motivação e competência, as respostas são alarmantes. Nos estados e
municípios o problema é o mesmo, senão pior. Muitos municípios brasileiros, que foram
vítimas do empreguismo de algum prefeito irresponsável, estão agora literalmente
paralisados, obrigados a manter um enorme número de funcionários desnecessários, que
consomem toda a receita corrente. Basta um único administrador público irresponsável,
que admita, via concurso, mais funcionários do que o necessário, e funcionários de
nível mais baixo do que o minimamente aceitável, para que todas as administrações
subsequentes fiquem manietadas por muitos e muitos anos com funcionários estáveis e
desnecessários.
Não há, entretanto, necessidade de extinguir a estabilidade.
Basta defini-la em dois níveis: de forma rígida, para as carreiras de Estado, de forma
flexível para os demais funcionários. A estabilidade rígida significa que o
funcionário que só poderá ser demitido por falta grave, via processo administrativo. A
estabilidade flexível, que o funcionário também poderá ser dispensado no interesse da
administração, por excesso de quadros, ou por falta de competência ou motivação
individual.
Entretanto, da mesma forma que acontece no setor privado, os
servidores que fossem demitidos sem alegação de falta grave não perderão todos os seus
direitos. Não teríamos uma situação de tudo ou nada, como é hoje, mas uma situação
intermediária, em que o funcionário terá direito a uma indenização razoável
correspondente ao que receberia se tivesse o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, a
férias e a décimo terceiro proporcional, e conservará o seu direito à aposentadoria do
setor público proporcional ao tempo trabalhado. Além disso, depois de um certo tempo de
exercício da função pública, o funcionário terá o direito de demitir-se levando
consigo seu direito à aposentadoria proporcional.
Para financiar a indenização correspondente ao FGTS, ou seja, a
aproximadamente um salário por ano trabalhado, o Governo estabeleceria, com recursos
orçamentários, um fundo. Não se imagine, entretanto, que esse fundo terá que ser muito
grande, porque, aprovada a reforma constitucional flexibilizando a estabilidade nos termos
propostos, não haverá grandes demissões, pelo menos no setor público federal.
Não haverá por duas razões. Primeiro, porque não há um excesso
generalizado de funcionário na União. Os servidores ativos civis e militares são hoje
cerca de 700 mil, e vem diminuindo, já que mais de 20 mil funcionários se aposentam ou
se exoneram cada ano, e já que os concursos, desde 1990 até 1993 permaneceram
praticamente suspensos. Em segundo lugar, porque, mesmo sem a estabilidade formal, haverá
uma grande resistência às demissões. Demitir funcionários não faz parte da cultura
brasileira. Só acontecerá quando houver claro excesso, ou desmotivação e
incompetência muito evidentes.
Mas isto não significa que nada mudará. Pelo contrário, haverá
uma mudança radical com a flexibilização da estabilidade. Porque, a partir desse
momento, cada funcionário e cada chefe sabe que a estabilidade é algo que se conquista
dia a dia, é algo que se constrói com dedicação e espírito público, não é um
privilégio que apenas protege os incompetentes.
Os servidores públicos em todos os níveis são, necessariamente,
uma minoria na sociedade brasileira. Representam menos de 6 por cento da força de
trabalho ativa do país. Seu trabalho é pago pela sociedade como um todo: por
contribuintes de impostos de todo o país, inclusive os próprios servidores. Sua
responsabilidade de cidadãos para com os demais cidadãos-contribuintes é portanto
enorme. Com a flexibilização da estabilidade essa responsabilidade poderá ser melhor
manifestada pelos próprios funcionários e melhor cobrada por toda a sociedade.
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