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Flexibilidade Sem Medo
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Correio
Braziliense, 26/01/95
Minhas declarações sobre a necessidade de se
flexibilizar a estabilidade dos funcionários públicos causaram uma reação de medo que
não faz o menor sentido. Primeiro porque flexibilizar a estabilidade não significa
desproteger os servidores. Segundo, porque, aprovada a reforma constitucional
flexibilizando a estabilidade nos termos que pretendemos propor, não haverá grandes
demissões, pelo menos no setor público federal. Terceiro, porque os benefícios que
terão os funcionários com a flexibilização serão muito maiores do que uma segurança
absoluta que apenas os desmoraliza.
Não haverá demissões por duas razões. Primeiro, porque
não há um excesso generalizado de funcionário na União. Os servidores ativos civis e
militares são hoje cerca de 700 mil, e vem diminuindo, já que mais de 20 mil
funcionários se aposentam ou se exoneram cada ano. Em segundo lugar, porque, mesmo sem a
estabilidade formal, haverá uma grande resistência às demissões. Demitir funcionários
não faz parte da cultura brasileira. Só acontecerá quando houver claro excesso, ou
desmotivação e incompetência muito evidentes.
O objetivo da flexibilização não é demitir mas motivar
os servidores e alcançar maior eficiência no trabalho. A partir dela cada funcionário e
cada chefe sabe que a estabilidade é algo que se conquista dia a dia, é algo que se
constrói com dedicação e espírito público, não é um privilégio que apenas protege
os incompetentes.
A estabilidade é necessária na medida em que defende o
Estado e seus funcionários contra os poderosos e os corporativistas. Mas deve ser uma
estabilidade sensata, razoável. Já a estabilidade rígida e generalizada prevista na
Constituição de 1988 é um obstáculo fundamental à reforma do Estado e à
consolidação do Plano Real. Não é possível haver uma administração pública
eficiente e moderna quando seus dirigentes não têm condições de exigir que o trabalho
seja executado com competência e disposição, nem meios de adequar os quadros de
funcionários às necessidades do trabalho a ser executado.
Só é aceitável uma estabilidade rígida para os
servidores das carreiras de Estado, como juizes, promotores, procuradores, delegados,
fiscais e militares. Nesses casos a estabilidade é uma defesa do Estado e da função
pública contra aqueles que podem se sentir prejudicados pelas decisões desses altos
servidores e têm poder para lograr sua demissão. O custo dessa estabilidade, por sua
vez, é pequeno, já que o número de funcionários nestas condições é reduzido. Por
outro lado, estas carreiras são constituídas por servidores qualificados, que, em parte,
se auto-controlam, e que, em qualquer hipótese, são facilmente controláveis pelos seus
pares e superiores.
Já o argumento a favor da estabilidade indiscriminada
para todos os funcionários é insubsistente. Há um velho argumento: dessa forma se
evitaria que nas mudanças de governo houvesse a demissão em massa por motivos
políticos. De fato, isto ocorria no Império, e pode ainda ocorrer em um ou outro estado
da federação ou em município muito subdesenvolvido. De um modo geral, entretanto, essa
é uma prática superada e inviável no sistema público brasileiro. Inviável e caída em
desuso. Tanto assim que não ocorreram demissões em massa em grande número de estados
quando houve, em 1983, a mudança do regime militar para o civil, não ocorreu também em
1985, quando a mesma mudança ocorreu a nível federal. Tanto em 1983 quanto em 1985 havia
ainda um enorme número de funcionários celetistas, não-estáveis.
Em compensação, o prejuízo causado à administração
pública pela estabilidade inflexível e indiscriminada é enorme. Em cada ministério, em
cada repartição da administração pública direta, em cada fundação ou autarquia, o
número de funcionários que trabalha sem motivação, ou que não tem trabalho efetivo
para realizar, é expressivo, ainda que constitua uma minoria. Nos estados e municípios o
problema é o mesmo, senão pior. Muitos municípios brasileiros, que foram vítimas do
empreguismo de algum prefeito irresponsável, estão agora literalmente paralisados,
obrigados a manter um enorme número de funcionários desnecessários, que consomem toda a
receita corrente. Basta um único administrador público irresponsável, que admita, via
concurso, mais funcionários do que o necessário, e funcionários de nível mais baixo do
que o minimamente aceitável, para que todas as administrações subsequentes fiquem
manietadas por muitos e muitos anos com funcionários estáveis e desnecessários.
Não há, entretanto, necessidade de extinguir a
estabilidade. Basta defini-la em dois níveis: de forma rígida, para as carreiras de
Estado, de forma flexível para os demais funcionários. A estabilidade rígida significa
que o funcionário que só poderá ser demitido por falta grave, via processo
administrativo. A estabilidade flexível, que o funcionário também poderá ser
dispensado no interesse da administração, por excesso de quadros, ou por falta de
competência ou motivação individual.
Da mesma forma que acontece no setor privado, os
servidores que fossem demitidos sem alegação de falta grave não perderão todos os seus
direitos. Não teríamos uma situação de tudo ou nada, como é hoje, mas uma situação
intermediária, em que o funcionário terá direito a uma indenização razoável
correspondente ao que receberia se tivesse o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, a
férias e a décimo terceiro proporcional, e conservará o seu direito à aposentadoria do
setor público proporcional ao tempo trabalhado. Além disso, depois de um certo tempo de
exercício da função pública, o funcionário terá o direito de demitir-se levando
consigo seu direito à aposentadoria proporcional.
Entendida a flexibilização da estabilidade nestes termos
não há razão para medo. O número de demissões será necessariamente pequeno. Em
compensação haverá mais trabalho, já que ninguém terá seu emprego protegido de forma
absoluta, monopolista. Hoje, para uma minoria, que não acredito seja maior do que 10 por
cento do funcionalismo, o emprego público é um cartório ou um privilégio. Estes terão
que mudar sua atitude e dedicar-se mais ao seu trabalho. Em conseqüência a grande
maioria dos funcionários, que realizam sem serviço com competência e espírito público
será beneficiada, já que poderão justificar junto aos contribuintes uma remuneração
mais adequada e gozarão um maior respeito social.
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