header_y.gif (2220 bytes)menu_lc_articles.gif (2681 bytes)
wpe1.jpg (645 bytes)



Democracia Consolidada

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Correio Braziliense, 15/03/95

Dez anos depois do fim do regime autoritário um fato parece indiscutível: a democracia está consolidada no Brasil. Pode não ser - e certamente não é - a democracia dos nossos sonhos. A desigualdade é ainda muito grande; a educação política, limitada; a cidadania, contraditória, já que temos 100 milhões de cidadãos-eleitores, mas o número de verdadeiros cidadãos, que participam da vida política, procurando fazer valer suas convicções e seus direitos é uma fração desse número. Mas se não é a democracia sonhada, se não é sequer a democracia dos países desenvolvidos, é uma democracia real. Uma democracia que enfrenta enormes desafios. Que tem ainda que consolidar a estabilidade de sua moeda, que precisa retomar de forma segura o desenvolvimento, que precisa eliminar privilégios e distribuir renda de forma mais justa. Que ainda não se livrou do populismo que pretende alcançar esses objetivos sem custos. Que não percebeu ainda o enorme valor do pragmatismo, e transforma o debate político em slogans vazios.
Há dois argumentos para sustentar a consolidação da democracia no país: um de ordem histórica, outro, de ordem racional.
O argumento histórico é duplo. De um lado, temos um argumento de longo prazo. Os países em que se consolidou o sistema capitalista tendem a ser democráticos. No processo de implantação do capitalismo, que Marx chamou de o processo de acumulação primitiva, o recurso ao autoritarismo é freqüente senão a regra. Como nos regimes pré-capitalistas a apropriação do excedente econômico era sempre feita de forma violenta - a escravidão, a corvéia - esses regimes eram sempre autoritários. Na fase da acumulação primitiva ou original, a apropriação do excedente pela burguesia continua a ser realizada de forma violenta - a escravidão capitalista, a pirataria, a corrupção generalizada, o monopólio, o subsídio estatal - de forma que o regime continua antidemocrático. No momento, entretanto, em que o capitalismo se consolida e a realização do lucro passa a ser primordialmente o resultado de uma troca de equivalentes no mercado, já não há mais o uso direto da força na apropriação do excedente, e a democracia torna-se historicamente dominante. No Brasil o capitalismo está claramente consolidado, de forma que uma classe empresarial moderna não precisa mais da força para realizar seu trabalho de acumulação de capital.
No curto prazo, a comprovação histórica da consolidação da democracia brasileira está no fato de esta, em seus 10 anos, ter enfrentado oito de crise. E nem por isso foi abalada. Em nenhum momento correu risco.
Temos, por outro lado, um argumento de ordem lógica ou racional. Uma democracia consolidas-se quando as classes dirigentes sentem que o procedimento democrático - afinal a democracia é essencialmente um procedimento formal de tomada de decisões políticas em que a liberdade seja garantida - é o mais seguro para ela. Que, apesar de todos os seus problemas e incertezas, não há outro sistema de tomada de decisões mais previsível porque sujeito a regras. Quando as duas classes dirigentes dos sistemas capitalistas contemporâneos - a classe capitalista (burguesia) e as classes médias assalariadas (burocracia) - são um grupo muito numeroso e diversificado, como acontece no Brasil, a democracia é certamente forma mais estável e segura de se atribuir o poder político e de se exercê-lo.
Entre muitas, há, entretanto, uma contradição básica na democracia brasileira. O instrumento fundamental de sua consolidação institucional foi a Constituição de 1988, e no entanto essa constituição é incompatível com uma democracia moderna. Os ranços do nacionalismo, do estatismo, do populismo, do burocratismo estão lá, ao lado da declaração firme dos direitos individuais e sociais. Nacionalismo expresso em discriminação desnecessária do capital estrangeiro; estatismo traduzido em monopólios para empresas estatais; populismo, traduzido na descentralização das receitas tributárias sem correspondente proibição de a União realizar gastos a nível local; populismo, ainda, na definição de direitos sociais que encarecem excessivamente o custo do trabalho e reduzem a competitividade internacional do país; e burocratismo, traduzido no regime jurídico único dos funcionários, que transformou em servidores públicos uma imensa quantidade de trabalhadores que não exercem funções típicas de Estado.
Por isso, a reforma da Constituição é uma prioridade do governo Fernando Henrique. Não basta que a democracia esteja consolidada. É preciso também que ela funcione. Que o Estado, democraticamente administrado, se transforme novamente em um agente de desenvolvimento econômico e social, e não em um obstáculo a ele. Para isto é preciso continuar o combate à crise fiscal do Estado, rever a sua forma de intervenção na economia e na sociedade, e reformar o aparelho burocrático do próprio Estado. Não são tarefas fáceis. Mas são tarefas viáveis, porque a sociedade mudou no Brasil; porque, ainda que incompleta, a cidadania aumenta de qualidade todos os dias no país; porque o corporativismo e o populismo, da mesma forma que o neoliberalismo e a incapacidade de defender os interesses nacionais, estão sendo denunciados todos os dias.
Essa mudança da sociedade já vinha acontecendo no regime autoritário, mas acelerou-se no regime democrático. É impressionante como esse regime começou populista e arcaico em 1985, desconhecendo a natureza da profunda crise do Estado que enfrentava, e, em 1994, foi capaz de eleger um presidente da república com uma mensagem popular e moderna, que em nenhum momento escondeu as dificuldades que terão que ser enfrentadas. Estas são as vantagens das verdadeiras democracias. Garantem a liberdade, permitem o avanço da cidadania e produzem líderes democráticos.