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A Emenda da Administração Pública

Luiz Carlos Bresser-Pereira

O Globo, 24/06/95

A administração pública moderna, compatível com a necessidade de eficiência no atendimento dos cidadãos, é a administração pública gerencial, descentralizada, voltada para resultados e para o seu controle a posteriori. A tendência universal, desde a Segunda Guerra Mundial, tem sido substituir a administração pública burocrática, lenta e ineficiente, baseada no controle a priori dos processos, pela administração gerencial. O Brasil também, desde os anos 60, orientou-se nessa direção, ao conceder autonomia administrativa e financeira às autarquias e fundações públicas e ao propiciar a contratação de funcionários pelo regime trabalhista. A Constituição de 1988, porém, representou um retrocesso dramático em direção às formas burocráticas de administração, engessando o aparelho do Estado. Por isso, uma das condições básicas para a reforma do Estado brasileiro é a reforma do capítulo sobre a administração pública.
A reforma administrativa constitucional que o governo Fernando Henrique apresentará brevemente ao congresso nacional será dividida em quatro emendas. A primeira emenda tratará das disposições gerais, incluindo-se aí temas importantes como a permissão limitada de concursos internos, diretrizes sobre carreiras, e normas sobre a participação popular na administração pública.
A segunda emenda elimina a exigência de um regime jurídico único e, assim, volta a permitir a contratação de empregados nas autarquias e fundações pelo regime CLT, ao mesmo tempo que possibilita maior autonomia gerencial às entidades prestadoras de serviço do Estado. É provavelmente a mais importante das quatro. Esta emenda parte do pressuposto de que o aparelho do Estado está composto por um núcleo estratégico, que define as leis e as políticas públicas e cobra sua execução, e por um amplo setor de serviços ao cidadão. Para o primeiro, em que a segurança, correção e efetividade das decisões são fundamentais, ainda justifica-se uma administração burocrática, embora já muito modernizada. Já no setor dos serviços a administração pública gerencial orientada para a eficiência, ou seja a boa qualidade do serviço a um custo menor, é crucial.
A terceira emenda flexibiliza a estabilidade para as funções não exclusivas de Estado. Esta emenda é necessária porque é uma condições de eficiência para a grande massa de funcionários, que só assim valorizarão seu trabalho; e porque é a única forma de resolver o excesso de quadros existente em certos setores do funcionalismo, especialmente nos estados e municípios. A emenda é extremamente cuidadosa, protegendo o funcionário contra a arbitrariedade, ao mesmo tempo que protege a sociedade contra o pouco trabalho. Estabelece uma situação intermediária entre o tudo ou nada irrealista do atual texto constitucional, segundo o qual ou o funcionário é mantido no cargo, ou perde todos os seus direitos ao ser demitido a bem do serviço público. Na proposta o funcionário poderá também ser dispensado sem haver cometido falta grave, por insuficiência de desempenho ou por excesso de quadros, tendo direito, nos dois casos, a indenização. No primeiro caso, o funcionário terá direito a ampla defesa; no segundo, lei complementar deverá estabelecer os critérios objetivos para dispensa. Nos dois casos inviabiliza-se a dispensa por motivos políticos - o único argumento respeitável a favor da estabilidade. Além disso mantém-se a exigência de concurso ou processo seletivo público.
Na verdade, a estabilidade foi uma inovação da administração burocrática, datada no século passado, quando era preciso combater a administração pública patrimonialista, para a qual a demissão por motivos políticos era a norma, na medida em que não havia distinção entre a res publica e a res principis. Hoje, em qualquer país civilizado, essa distinção está clara, de forma que a estabilidade transformou-se em um dinossauro burocrático, a não ser para as carreiras em que o Estado tem necessidade de defender a autonomia de suas decisões.
Esta emenda é freqüentemente considerada a de mais difícil aprovação, dado o poder de que dispõem os funcionários que seriam atingidos. De fato, é preciso não subestimar esse poder. Os funcionários têm pouco poder sindical, mas dispõem de um poder estratégico por estarem situados não apenas nos gabinetes dos congressistas, mas também por serem membros de suas famílias e por serem, freqüentemente, seus principais cabos eleitorais.
É um equívoco, entretanto, imaginar que todos os funcionários se oporão à emenda. Não apenas porque ela é muito razoável e equilibrada, mas principalmente porque os bons funcionários - e há muitos - só serão beneficiados por ela. Uma demanda básica e muito justa dos servidores públicos é a de que seu trabalho seja valorizado pela sociedade. Hoje esse trabalho não é valorizado. O conceito dos servidores perante os cidadãos que pagam impostos e esperam serviço em troca encontra-se profundamente deteriorado. Não podia deixar de ser de outra forma. Como é possível para a sociedade valorizar o trabalho de quem esconde sua própria ineficiência ou então a desnecessidade do trabalho que realizaria atrás de uma estabilidade rígida no cargo? Os bons funcionários são extremamente necessários. Quando deixarem de ser confundidos com os funcionários desmotivados e ineficientes, ou então com os ociosos, serão muito mais valorizados, poderão ter salários melhores e perspectivas de carreira muito mais amplas.
A terceira emenda, que exige projeto de lei com possibilidade de veto presidencial para qualquer aumento de remuneração nos três poderes, é fundamental para se garantir um mínimo de isonomia no serviço público. Isonomia salarial como direito de funcionário é um desastre, já que a valorização subjetiva da própria função leva a uma cadeia de reivindicações, que, se atendidas, provocam uma bola de neve de aumentos salariais. Como política administrativa, entretanto, a busca da isonomia salarial é uma questão de bom senso partilhada por qualquer administrador.
Quando a Constituição de 1988 foi votada, não houve discussão pública do capítulo sobre a administração. O processo de reburocratização foi produto de uma conspiração do silêncio e do segredo, que são tão caros à burocracia. Em 1995, porém, ninguém poderá mais contar com o segredo e o silêncio. A necessidade de uma administração pública eficiente, gerencial, ao invés de burocrática, está na agenda do país desde o início deste ano. Cada cidadão já tem hoje sua opinião sobre o assunto, ou a está formando. Na sociedade brasileira, com e eleição de Fernando Henrique, constituiu-se, finalmente, um novo pacto político, um grande acordo nacional de amplo espectro, voltado para a modernidade e a competição internacional. Nesta grande coalizão de classes não há mais espaço para o corporativismo dos que privatizam o Estado, nem para o burocratismo que o paralisa.