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Reformas: França e Brasil
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de São
Paulo, 24/12/95
Por que a reforma do Estado está ocorrendo de forma mais suave no
Brasil do que na França? Por que naquele país as medidas do governo visando equilibrar a
previdência social encontraram resistência violenta por parte dos funcionários,
particularmente dos ferroviários e metroviários, que paralisaram a França com apoio da
opinião pública, enquanto aqui os sindicatos não logram qualquer mobilização
significativa. Por que, finalmente, o governo francês foi obrigado a recuar, não
obstante a óbvia necessidade das reformas, enquanto no Brasil as reformas, embora
enfrentando dificuldades naturais, continuam a caminhar firmemente no Congresso?
Em relação à França, há explicações de todos os matizes para
estes fatos. A direita no Brasil grita que os franceses são "baderneiros por
natureza": a França seria o país das revoluções e da instabilidade política. Ou
então acusa-os de "estatistas empedernidos": o papel do Estado foi sempre
decisivo no capitalismo francês. Da outra parte, a esquerda se regozija com as
dificuldades enfrentadas pelas "reformas neoliberais".
Já em relação ao Brasil, existe para a grande maioria da
população, uma agradável surpresa com o firme caminhar das reformas, enquanto a
perplexidade caracteriza as forças extremas que se opõem às reformas: o corporativismo,
transformado em triste bandeira de uma velha esquerda, e o patrimonialismo que sobrevive
indômito na velha direita clientelista.
Brasil e França estão no mesmo barco, neste caso. A França rica
e culta, enfrenta nos anos 90, a mesma crise do Estado que nós, brasileiros, enfrentamos
desde os anos 80. Crise do Estado que, somada ao processo de globalização da economia
mundial, constitui a explicação fundamental para a desaceleração econômica que
ocorreu a partir dos anos 70 em todo o mundo, - desaceleração que se transformou em
crise aguda na América Latina e no Leste Europeu nos anos 80, que se manteve em
situação de crise crônica no Primeiro Mundo, e da qual apenas escapou o Leste e o
Sudeste Asiático.
Diante dessa crise é preciso reformar o Estado. Reduzi-lo um
pouco, fortalecê-lo muito. Devolver-lhe capacidade de realizar poupança pública.
Redefinir suas formas de intervenção no econômico e no social. Retirá-lo da produção
de bens e serviços; aumentar seu papel de regulador e financiador nas áreas em que o
mercado falha na coordenação da economia. Por isso é preciso realizar o ajuste fiscal;
equilibrar o orçamento da seguridade social; privatizar as empresas; publicizar os
serviços do Estado em que não está envolvido o poder de Estado, transferindo-os para o
setor público não-estatal; liberalizar o comércio internacional; desregular; eliminar
os restos de patrimonialismo; substituir a administração pública burocrática pela
gerencial.
É isto que estamos fazendo no Brasil já há vários anos.
Reformas que não são "neoliberais" porque não objetivam o Estado mínimo mas
o Estado reconstruído. Reformas orientadas para o mercado que visam ao mesmo tempo
reduzir e fortalecer o Estado. Reformas que o governo Fernando Henrique Cardoso
intensificou neste ano que está terminando. Reformas que a França postergou o mais que
pode, e que, afinal o governo conservador de Chirac e Juppé, tentou introduzir, de forma
autoritária, há cerca de um mês.
Nesta última frase está a resposta às perguntas iniciais deste
artigo. A razão pela qual a reforma do Estado está ocorrendo de forma muito mais suave
no Brasil do que na França é essencialmente política. Os franceses estão indignados
com o governo de Chirac e Juppé. Entendem que foram enganados. Perderam a confiança.
Chirac foi eleito prometendo baixar os impostos, reduzir suavemente a despesa pública e
aumentar o emprego. Prometeu o paraíso. Eleito, deu uma guinada. Aumentou os impostos, e
agora ameaça com maior desemprego. Por outro lado, a introdução destas medidas de
contenção foram feitas sem qualquer debate. Por decreto. O discurso do primeiro ministro
anunciando as medidas foi pós-facto.
A situação do Brasil é diferente. Nossa crise do Estado foi mais
grave. Em um certo momento chegamos à hiperinflação. Por isso começamos as reformas
mais cedo. E, neste momento, estamos realizando as reformas de uma maneira estritamente
democrática. Na campanha presidencial Fernando Henrique não deixou nenhuma dúvida
quanto à prioridade da reforma do Estado. E, uma vez no governo, iniciou, apoiado em seus
ministros e nos seus parlamentares, um debate amplo e aberto sobre todos os problemas. Um
debate que continua. Que tem na imprensa seu veículo principal. Mas que ocorre em todas
as arenas: nas famílias, nas comunidades, nos grupos de amigos, nas empresas, nas
escolas.
Estas reformas são uma resposta à crise do Estado e ao processo
correlato de globalização da economia mundial. O grande desafio que elas apresentam é a
de reverterem a tendência à exclusão social que está ocorrendo em todo o mundo, ao
invés de o agravarem. Os intérpretes apressados atribuem essa concentração de renda
às "reformas neoliberais", quando, na verdade, ela decorre da globalização,
que aumentou a competição internacional, e da crise econômica desencadeada pela crise
do Estado. Este, ameaçado pela crise fiscal e limitado pela globalização, encontra
dificuldades crescente em ser o elemento compensador dos desequilíbrios sociais.
Diante dessa fato, as reformas podem, ou aumentar ainda mais os
desequilíbrios, ou diminuí-los. Depende de como forem desenhadas. Quando privilégios
nos sistemas de aposentadorias dos servidores públicos são eliminados, quando a
estabilidade é flexibilizada, quando os abusos na remuneração dos servidores são
controlados, da mesma forma que quando a proteção e os subsídios ao setor privado são
eliminados, quando a corrupção é controlada, quando a sonegação fiscal é diminuída,
o Estado é fortalecido e a concentração de renda, diminuída. Quando o ajuste fiscal
avança e o Estado recupera capacidade de realizar políticas sociais, principalmente na
área da educação e da saúde, os desequilíbrios sociais novamente se reduzem.
A curto prazo haverá sacrifícios. Principalmente quando se falar
de ajuste fiscal, que sempre é doloroso. Mas no médio prazo, não há dúvida que um
Estado reformado, ou seja, um Estado mais democrático e menos privatizado será um Estado
mais forte e mais justo.
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