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A Estabilidade Revista
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Jornal do
Brasil, 01/03/96
A reforma constitucional do instituto da estabilidade dos
servidores públicos, que entrará agora em fase decisiva na Câmara dos Deputados, abre
espaço para a implantação no país de uma administração pública gerencial em
substituição à administração burocrática, sinalizando o compromisso da sociedade
brasileira e de seus representantes políticos com um novo Estado moderno e eficiente,
voltado para o atendimento das necessidades dos cidadãos.
O sistema atual é rígido, todos os funcionários têm
estabilidade, a qual só pode ser rompida através de um processo administrativo em que se
prove falta grave. A enumeração das faltas que podem ser consideradas é ampla,
incluindo a desídia. Na verdade, entretanto, alguém só é demitido se furtou, se
ofendeu grave e publicamente, ou se abandonou o emprego. Se isto aconteceu e puder ser
provado, o funcionário poderá ser demitido sem nenhum direito. Nos demais casos, seja
porque é difícil de provar. Seja porque há uma cumplicidade generalizada, ninguém é
demitido.
Na proposta de reforma
o governo abandonou esse tudo ou nada, segundo o qual ou o servidor conserva o emprego ou
perde todos os seus direitos, e partiu para um sistema gradualista, semelhante ao já
adotado pelo setor privado. São criadas duas novas causas para demissão além da falta
grave: a demissão por insuficiência de desempenho e a exoneração por excesso de
quadros. Para ficar claro que a demissão por insuficiência de desempenho não é a mesma
coisa que a por falta grave, o funcionário terá direito a uma pequena indenização.
Esta indenização será maior se o desligamento tiver como causa o excesso de quadros,
já que nesse caso não há responsabilidade pessoal do funcionário pelo fato de ter sido
exonerado.
A demissão por insuficiência de desempenho se dará caso a caso.
Seu objetivo será permitir que o administrador público possa cobrar trabalho do
funcionário, e assim viabilizar a administração pública gerencial. Já o desligamento
por excesso de quadros será impessoal e voltada para a demissão de grupos de
funcionários. O objetivo é reduzir custos, é garantir que os contribuintes não sejam
obrigados a pagar por funcionários para os quais o Estado não tenha necessidade. No
segundo caso a indenização corresponderá, em princípio, a um salário por ano
trabalhado, no primeiro, à metade desse valor.
O servidor só poderá ser demitido por insuficiência de
desempenho se for submetido a processo de avaliação formal. Como as avaliações de
desempenho, por melhores que sejam, têm sempre um caráter subjetivo, o funcionário
terá direito a processo administrativo com ampla defesa. Este dispositivo visa permitir a
cobrança de trabalho pelos administradores públicos. A motivação dos servidores deve
ser principalmente positiva - baseada no sentido de missão, nas oportunidades de
promoção, e no reconhecimento salarial -, mas é essencial que haja também a
possibilidade de punição.
Já a exoneração por excesso de quadros permitirá a redução da
déficit público, através da adequação do número de funcionários às reais
necessidades da administração. A decisão deverá ser rigorosamente impessoal,
obedecendo a critérios gerais (p.ex., os mais jovens, ou os mais recentemente admitidos
sem dependentes), de forma a evitar a perseguição política. Os critérios impessoais
evitarão longas contestações na Justiça, que são inevitáveis quando há um elemento
de escolha no processo.
Uma alternativa seria combinar os critérios impessoais com
avaliação de desempenho. Embora essa alternativa seja atrativa, ela é na verdade
incompatível com o desligamento por excesso de quadros, que acabaria reduzido à
demissão por insuficiência de desempenho. Todos os funcionários atingidos imediatamente
argüiriam estarem sendo vítimas de perseguição política, iniciar-se-ia uma longa
ação judicial, e os objetivos da exoneração - reduzir quadros e despesa - seriam
frustrados. De acordo com a proposta do governo, uma vez decidida a exoneração de um
determinado número de servidores, os respectivos cargos serão automaticamente extintos,
não podendo ser recriados dentro de quatro anos. Dessa forma evita-se a exoneração por
motivos políticos.
Estas mudanças não se fazem apenas para atender o interesse
público e o da cidadania, mas também em benefício do funcionário. Todo servidor
competente e trabalhador, que valoriza seu próprio trabalho, será beneficiado. Saberá
que está realizando uma tarefa necessária. E, ao mesmo tempo, readquirirá o respeito da
sociedade - um respeito que foi perdido quando uma minoria de funcionários
desinteressados, cujo trabalho não pode ser cobrado, estabeleceu padrões de
ineficiência e mal atendimento para todo o funcionalismo.
É importante, entretanto, observar que a estabilidade do servidor,
embora flexibilizada, é mantida, na medida que este só poderá ser demitido nos termos
da lei. Caso haja abuso, o servidor poderá sempre ser reintegrado pela Justiça, ao
contrário do que acontece no setor privado, onde, não existindo estabilidade, o
empregado demitido tem apenas direito a indenização. A manutenção da estabilidade do
servidor não apenas reconhece o caráter diferenciado da administração pública em
relação à administração privada, mas também a maior necessidade de segurança que
caracteriza o serviço público. Aqueles que escolhem essa profissão tendem a ter uma
vocação para o serviço público, estão dispostos a ter uma vida modesta, mas em
compensação esperam maior segurança do que, por exemplo, a dos políticos ou dos
empresários. Esta segurança, entretanto, não pode ser absoluta. O Estado garante
estabilidade aos servidores porque assim assegura maior autonomia ou independência à sua
atividade pública, ao exercício do poder-de-Estado de que estão investidos; não a
garante para atender a uma necessidade extremada de segurança pessoal, muito menos para
inviabilizar a cobrança de trabalho, ou para justificar a perpetuação de excesso de
quadros.
No setor privado, quando, nos anos 60, a estabilidade dos
funcionários privados foi substituída pelo Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, os
opositores à medida pensavam que o mundo iria desabar sobre a cabeça dos trabalhadores.
Nada disso ocorreu. Apenas as empresas ganharam maior eficiência, enquanto que os
trabalhadores passaram a ser racionalmente protegidos. Da mesma forma, quando o governo,
no início de 1995, revelou sua intenção de flexibilizar a estabilidade dos servidores,
muitos pensaram que esta era uma reforma politicamente inviável. Hoje há um consenso de
que a mudança na Constituição deverá ser aprovada porque foi elaborada com grande
cuidado e equilíbrio, depois de debate nacional; porque conta com amplo apoio na
sociedade; porque governadores e prefeitos de todos os partidos lhe são favoráveis;
porque, enfim, o país está maduro para ela.
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