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A Razão e a Vida
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de São
Paulo, 17/07/96
No debate que se seguiu à aprovação, em primeiro turno, da
Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, Luís Nassif, indignado com a
reação, escreveu "o que importa é a vida", sugerindo com isto que mais
importante do que condenar o novo imposto provisório, acusando-o de irracional, é
preciso considerar os direitos humanos envolvidos. Mas será mesmo? A soberana
racionalidade econômica pode ser submetida a considerações dessa natureza? Ou melhor,
afinal essas considerações já não estão incorporadas nessa mesma racionalidade? Além
disso, há justificativa para que os fatores políticos se sobreponham às considerações
econômicas, identificadas, no capitalismo contemporâneo, com o próprio conceito de
razão? Não seria este um imposto meramente "populista"? Afinal, porque o
governo Fernando Henrique, que tem como uma de suas bandeiras a racionalidade econômica,
acabou apoiando o CPMF?
Nenhuma acusação para mim a uma política pública é mais
definitiva do que ser populista. Mas, nas condições presentes, será o CPMF populista?
Sem dúvida, preferiria um outro imposto que não apresentasse o efeito cascata. Melhor
ainda, preferiria que não houvesse novo imposto, garantindo-se o financiamento do Sistema
Único de Saúde com os recursos disponíveis. Mas uma coisa é "preferir", é
dedicar-se ao exercício do desejo inconseqüente, do wishful thinking. Outra coisa
é enfrentar de frente os problemas e resolvê-los, assumindo os custos envolvidos.
O que o Presidente Fernando Henrique fez, ao apoiar decididamente o
CPMF, foi isto. Quando verificou que, no curto prazo, não havia outra alternativa para
financiar o SUS, quando ficou claro que a saúde pública precisava urgentemente de
recursos adicionais para fornecer um serviço minimamente compatível com os direitos
humanos do povo brasileiro e o nível de desenvolvimento econômico já alcançado pelo
país, não hesitou em dar todo o seu apoio, ao mesmo tempo que ordenava a aceleração do
processo de reforma administrativa do SUS, de forma a municipalizar mais decididamente sua
operação e tornar o controle do gasto público junto a hospitais e ambulatórios mais
efetivo.
Quanto à necessidade de recursos adicionais, não há qualquer
dúvida. Depois de feitos os pagamentos das despesas vinculadas, dos salários e
aposentadorias dos funcionários, e dos 650 milhões de reais destinados mensalmente à
saúde, o que resta para financiar os investimentos e todas as outras despesas de custeio
é irrisório. Isto não significa que a despesa do governo seja incomprimível, mas nesta
direção os resultados não são imediatos. As distorções no pagamento de servidores
públicos, principalmente de inativos, são imensas. Neste ano não foi concedido aumento
geral aos funcionários. Apesar da taxa de juros no mercado continuar relativamente
elevada, os juros pagos pelo Estado já foram substancialmente reduzidos devido ao aumento
da cunha fiscal. Não há muito espaço para maior redução nesta área. Na verdade, o
CPMF apenas aumenta um pouco mais essa cunha.
A necessidade de recursos adicionais para a saúde é, portanto,
indiscutível. Por outro lado, não foi possível apresentar a curto prazo uma alternativa
razoável para o financiamento da saúde pública. Por que, então, tanto barulho depois
de sua aprovação? E por que o barulho não foi maior antes?
A resposta a estas duas questões parece clara. O problema não é
o CPMF, é o aumento de impostos que ninguém gosta de pagar. E para não pagar, há duas
razões básicas: uma de direita neoliberal, outra populista. Não há uma razão de
esquerda, nem de centro-esquerda, nem mesmo de centro-direita.
A razão de direita neoliberal é muito simples: não seria
função do Estado garantir de forma universal a saúde dos cidadãos brasileiros. O
neoliberal quer retirar o Estado não apenas da produção de bens para o mercado - isto
também querem todos menos os estatistas empedernidos - mas da área social. Quer
transformar a educação e a saúde em um problema individual, a ser financiado por cada
família; e a assistência social em um problema de caridade.
Já o populista, seja ele de direita ou de esquerda, quer o
serviço social prestado pelo Estado, mas não quer financiá-lo. Imagina que os recursos
possam aparecer por obra e graça do Espírito Santo. Não tem noção de trade off,
de permuta interna, de que para ganhar alguma coisa é preciso perder outra.
Mas que racionalidade da direita neoliberal é essa que ignora os
fins, que coloca a vida dos cidadãos brasileiros em segundo plano? Essa não passa de uma
racionalidade instrumental e conservadora, que muitos economistas e empresários pretendem
neutra em termos valorativos confundindo-a com a racionalidade mesma. A razão não se
limita aos meios, preocupa-se também com os objetivos e os valores neles implícitos. E a
vida é um valor fundamental com o qual não é possível brincar.
Por outro lado, que guardiães dos valores humanos são esses
populistas que criticam o governo por não dar suficiente atenção à área social, mas
não lhe garantem recursos fiscais mínimos para financiar os respectivos gastos? Essa
não passa de uma perspectiva irresponsável da administração do Estado.
Felizmente, nem a direita neoliberal nem o populismo de esquerda e
de direita são hoje dominantes no Brasil. E definitivamente são minoritários na grande
coalizão de centro, no grande pacto político voltado para o desenvolvimento, que está
na base do governo. Por isso o CPMF, com seus defeitos e qualidades, foi aprovado. Por
isso, apesar de alguns revezes na área da previdência que ainda poderão ser superados,
as reformas que o Estado brasileiro tanto necessita serão afinal aprovadas. Para isto
basta a determinação da maioria, uma maioria que está identificada com o interesse
nacional.
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