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D. Paulo e a Modernidade

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de São Paulo, 23/09/96

No último dia 15 dois artigos nesta mesma página 3 homenageavam duas grandes personalidades brasileira desta segunda metade do século: Dom Paulo Evaristo Arns, que completava 75 anos, e o Presidente Ernesto Geisel, falecido. Curiosa coincidência colocar lado a lado dois homens que lutaram de lados diferentes, mas que, afinal tiveram pontos básicos em comum: honestos, corajosos, voltados para a serviço público.
Sou amigo pessoal e admirador de Dom Paulo. É um grande bispo da Igreja. É um homem de cultura e de poder. Trabalhei com ele durante vários anos, em duas ocasiões: primeiro, no Conselho de Administração da PUC, ainda nos anos 70, e depois, até vir para o governo Fernando Henrique Cardoso, no Conselho de Administração da Cúria Metropolitana de São Paulo. Conheço-o bem. Sei como é capaz de caminhar contra a corrente e desafiar os poderosos quando necessário. Mas sei também como é prudente, hábil, e determinado em suas ações.
Os homens podem ser notáveis por sua contribuição intelectual e científica, por sua contribuição artística. Mas não há nada que mais dignifique o ser humano do que sua dedicação à causa pública. Dom Paulo e Geisel notabilizaram-se por esse fato, mas de uma forma diferente. O ex-presidente tinha como critérios fundamentais para sua ação o poder do Estado e o desenvolvimento econômico. Quando iniciou o programa de "distensão" política, em 1984, o fez em nome de sua própria demanda de governabilidade. Quando a abertura começou a apresentar problemas, não teve dúvidas em fechar o Congresso. Depois voltou ao programa de liberalização política, que passou a ser denominado "abertura". Mas sua abertura era controlada, protelatória, uma estratégia de manter sob controle as demandas da sociedade, que haviam recrudescido depois do seu Pacote de Abril de 1977. E afinal não teve convicção democrática suficiente para tentar passar o poder para um civil, através de eleições democráticas, como provavelmente poderia tê-lo feito. Contribuiu, sim, para a transição democrática, na medida em que representava a linha branda dos militares, em contraposição à linha dura. E teve a grandeza de terminar com a tortura, que dominava os serviços de segurança militares. Mas afinal a linha branda não "ofertou" o redemocratização à sociedade, como alguns escreveram. Na verdade, esta foi uma conquista da sociedade. O fato novo fundamental que levou a ela foi o rompimento das elites empresariais com o regime militar ocorrido a partir de 1977.
Já em relação a Dom Paulo seus compromissos sempre foram claros e precisos. Primeiro, sem dúvida, o compromisso com Deus e sua Igreja Católica - embora em relação a esta um compromisso qualificado. Dom Paulo é um bispo da Igreja do Concílio Vaticano II. Segundo, seu duplo compromisso social: de um lado com os direitos humanos e os pobres, de outro lado, com a modernidade.
Dom Paulo nunca teve dúvida de que a modernização (o aggiornamento) da Igreja e da sociedade brasileiras são fenômenos semelhantes. A Igreja, antes de João XXIII, era uma igreja retrógrada e autoritária, desligada dos movimentos emancipadores da sociedade; o Brasil continua a ser um país dramaticamente marcado pelo desequilíbrio e a injustiça social, que inviabilizam qualquer projeto sério de modernidade. Em uma entrevista à Folha (11.0.96), quando o repórter lhe perguntou como se sentia diante da acusação de que antes defendia os comunistas e a agora os criminosos, Dom Paulo repeliu a calúnia, e acrescentou: "Mas não posso desistir de uma coisa que é essencial ao cristianismo: defender aqueles que não têm defesa, e defender aqueles que têm razão em pontos que a maioria ainda não reconhece". A resposta não poderia ser sobranceira e forte. Um pouco adiante, quando o repórter lhe pergunta que perfil deveria ter seu sucessor na arquidiocese de São Paulo, dom Paulo não hesitou: "ser amigo do povo e firme com e evangelho".
Esta coragem em defender os pobres e os oprimidos, em não distinguir direitos humanos de ricos e de pobres, foi sempre a marca de Dom Paulo. Mas uma marca sem radicalismos nem partidarismos. Dom Paulo jamais se deixou encantar com ideologias: a única que reconhece ele não a vê como tal: o cristianismo. Jamais, também, foi partidário. Sempre demonstrou simpatia para os diversos partidos de esquerda moderada, mas não se atrelou a eles. Muito menos a uma esquerda burocrática. Em todos os momentos, estava claro que estávamos diante de um bispo da Igreja, cujas responsabilidades estão para com toda a população de sua arquidiocese, sem distinções de classe, raça ou partido. E também sem distinção religiosa, já que sempre professou um ecumenismo militante.
Nos tempos da ditadura militar, ninguém teve mais coragem e prudência em enfrentá-la. Em muitos dos diagnósticos dos regime autoritário, nos anos 70, Dom Paulo era visto como o principal líder da sua oposição, como o mais forte defensor dos direitos humanos e da democracia.
Esta coragem e essa firmeza trouxeram problemas para Dom Paulo: problemas em Roma, depois da guinada para a direita desta dos últimos 15 anos; problemas com o governo, no período autoritário; problema com as elites econômicas paulistas, que sempre o viram com uma ponta de desconfiança, incapazes de compreender seu papel mediador e incentivador no processo de modernização do país.
Agora, entretanto, quando Dom Paulo poderá ser substituído na arquidiocese de São Paulo por haver atingido a idade-limite de 75 anos, toda a sociedade paulista, senão brasileira, manifesta sua preocupação. Afinal, continuamos a enfrentar, no campo da injustiça, no campo dos direitos humanos e dos direitos sociais, problemas gravíssimos. Embora ninguém seja insubstituível, quem melhor do que ele para continuar a ajudar a resolver estes problemas fundamentais da modernidade brasileira?