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Uma Nova Lei de Licitações


Luiz Carlos Bresser-Pereira

Gazeta Mercantil, 27/09/99

O governo federal está terminando um novo projeto de lei de licitações. A atual lei, 8.666, é recente, mas hoje já existe uma quase unanimidade nacional de que precisa, com urgência, ser profundamente mudada, senão substituída por uma lei nova. Por que falhou a 8.666? Essencialmente, porque, ao adotar uma perspectiva estritamente burocrática, ao pretender regulamentar tudo tirando autonomia e responsabilidade do administrador público, atrasou e encareceu os processos de compra do Estado e das empresas estatais, sem garantir a redução da fraude e dos conluios.
Seu erro fundamental foi ter concentrado toda a sua atenção na tarefa de evitar a corrupção, através de medidas burocráticas estritas, sem preocupar-se em baratear as compras do Estado, nem permitir que o administrador público tome decisões. Partiu-se do pressuposto de que todo servidor público é corrupto e assim foi-lhe retirada qualquer capacidade de negociação, deixando tudo por conta da lei. Reduziu-se assim o espaço do administrador eventualmente corrupto, mas a um custo altíssimo: tornou quase impossível que administrador honesto - que é a maioria - faça a melhor compra para o Estado.
Por outro lado, as possibilidades de acordos de preço entre fornecedores continuaram intocadas, já que é impossível para uma lei evitá-las através de procedimentos administrativos. A única forma de reduzir os carteis é penalmente, e nesta área a 8.666 revelou-se surpreendentemente tímida.
Seu segundo erro foi o de usar como padrão ou base de referência a licitação de obras de engenharia. Ora, esse é um processo de compra complexo por definição, já que depende de projetos, de avaliação de competência técnica e de capacidade financeira. Não pode, portanto, servir de parâmetro para a compra de uma grande quantidade de outros bens e serviços padronizados e/ou de pronta entrega que o Estado está permanentemente comprando.
Seu terceiro erro foi o de - ao corretamente procurar garantir o acesso dos pequenos às licitações - não ter assegurado ao Estado que a obra contratada seja concluída com segurança. Esse erro foi menos da lei e mais de um veto que retirou da lei qualquer exigência de verificação da capacidade técnico-operacional para se participar de uma licitação.
Em conseqüência desses equívocos o processo licitatório tornou-se lento e caro. As estimativas sobre o encarecimento das compras do governo, embora precárias, variam entre 10 e 20 por cento do seu custo. Encarecimento para o Estado, que deverá observar minuciosamente, desde o momento do edital, os dispositivos formais da lei, como as planilhas de preços, e ter que discriminar rigorosamente e a priori cada parafuso que será necessário na futura obra ou quantas latas de cera ou vassouras serão gastas no serviço de limpeza. Encarecimento para o licitante decorrente da exigência de documentos desnecessários, dos prazos demorados, da facilidade senão do incentivo às impugnações administrativa e judiciais. Encarecimento para todos: dado o detalhismo da lei, estas impugnações transformaram-se em uma indústria. Dado o rigor formal da lei, é impossível o edital perfeito, havendo, pois, sempre ensejo a impugnações meramente protelatórias. Qualquer empresa que perde a licitação pode entrar em juízo sem quase nenhum custo, já que o ônus de demonstrar que não há irregularidade é da Administração ao invés de do demandante.
Existe hoje uma unanimidade no governo e no serviço público, em todos os seus níveis, de que é preciso reformar essa lei. Só não compartilham dessa convicção burocratas empedernidos e principalmente alguns pequenos empreiteiros que se beneficiaram indevidamente da radical eliminação das exigências de capacidade técnica através do veto do Presidente Itamar Franco. Estas pessoas argumentam que o grande problema é evitar a corrupção do administrador público. E para isto bastaria estabelecer regras detalhadas na lei de forma a cercear ao máximo o subjetivismo dos administradores públicos nas licitações, tirar-lhes todo o poder de decidir. Assim, não adiantaria corromper um funcionário do Estado. Ele se tornaria tão incorruptível quanto um robô... Esta é uma pregação arcaica e burocrática, indigna de um empresário moderno. Parte do princípio que o administrador público não deve decidir, apenas cumprir fielmente o regulamento. É claro que a administração da res publica - do patrimônio público - exige cautelas, não se podendo comprar no Estado com a mesma liberdade que se compra no setor privado, mas daí a condenar o Estado, suas empresas, autarquias e fundações a comprar ineficiente e irracionalmente vai uma distância muito grande.
Convencido da necessidade de mudança, o governo está terminando a revisão da lei. Um novo projeto deverá evitar ou diminuir cinco custos: (1) o custo do conluio entre comprador e vendedor (corrupção); (2) o custo do conluio entre os vendedores (cartel); (3) o custo de receber um bem ou serviço com qualidade inferior ao que foi contratado (fraude); (4) o custo de simplesmente não receber o bem ou serviço contratado dada a incapacidade do vencedor da licitação; e (5) o custo do encarecimento e atraso da compra devido às exigências burocráticas excessivas e à possibilidade de impugnações judiciais levianas, meramente protelatórias.
A 8666 preocupou-se apenas com o primeiro custo, retirando qualquer possibilidade de decisão por parte das comissões de licitação, não resolveu o segundo, e deixou em total segundo plano os três últimos custos.
A fraude na qualidade do serviço contratado está diretamente relacionada com a rígida adoção do princípio do menor preço. O custo de não receber o bem ou serviço contratado deriva da não-exigência de qualificações e garantias mínimas dos fornecedores. O custo do encarecimento da compra é conseqüência das exigências de documentos e prazos, das possibilidades de impugnações e adiamentos, do atraso do governo no pagamento. Todos esses custos acabam sendo assumidos pelo Estado, já que os fornecedores não têm outra alternativa senão incluí-los no preço ofertado.

A Nova Lei
O novo projeto, que em breve deverá ser publicado para debate na sociedade, já é fruto de uma ampla consulta que o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado realizou, e do trabalho intenso de um grupo de trabalho coordenado pela Casa Civil. Na nova lei se procurará evitar aqueles cinco custos através de várias estratégias.
Em primeiro lugar, reservará, nos termos da Constituição, uma seção (o Título I da lei), onde estarão presentes as normas gerais de licitação e as disposições penais – estas agravadas em relação ao texto atual –, de observância obrigatória em todo o território nacional. As demais seções da lei, de caráter específico, só serão obrigatórias para a administração federal direta. Serão, porém, obrigatórias para os estados, municípios e órgãos da administração federal indireta enquanto não editarem leis ou regulamentos próprios.
Em segundo lugar, classificará os objetos de contratação em (1) obras ou bens sob encomenda, (2) bens padronizados e (3) demais bens, e (4) serviços de engenharia, (5) serviços técnico-especializados, (6) serviços técnicos "intermediados" como publicidade e turismo e (7) demais serviços.
Esta classificação entre os bens e os serviços segue o critério de maior para menor complexidade. Nesses termos será possível diferenciar as compras conforme sua complexidade e valor, com exigências proporcionais quanto aos documentos, garantias e prazos.
Na parte geral da lei, correspondente ao Título I, não são elencados os documentos a serem exigidos do licitante para comprovação de sua capacidade, mas é apenas indicado que versarão sobre a (a) capacitação jurídica, (b) regularidade fiscal, (c) qualificação técnica e (d) e qualificação econômico-financeira. No Titulo II, entretanto, aplicável à administração federal direta, estes documentos são especificados, servindo de parâmetro para a legislação da administração indireta, dos estados e dos municípios.
O caso das agências de turismo e das empresas de publicidade, que adotam comissões padronizadas, encarecendo indevidamente as compras do Estado, exigirá tratamento especial. Deverá ser utilizada preferencialmente a licitação do tipo técnica-e-preço, sendo possível estabelecer um desconto máximo ou uma comissão mínima, para evitar concorrência predatória. Em caso de empate de preço prevalecerá o critério técnico.
Nas grandes obras, que poderão ser realizadas pelo critério de técnica e preço, e não apenas de preço, caso o detentor da melhor técnica não apresente o melhor preço, a comissão de licitação terá condições de negociar e obter deste baixa do preço para o menor preço. Hoje isto é impossível porque a lei determina que as licitações de melhor técnica ou de técnica e preço sejam "utilizados exclusivamente para serviços de natureza predominantemente intelectual". A atual lei contém um dispositivo que permite esse procedimento excepcionalmente, mas as exigências ou condições são tantas que se torna impraticável.
Sabe-se que tal rigor e detalhamento foi introduzido na legislação por ser entendimento que as obras licitadas no tipo "técnica" ou "técnica e preço" eram dirigidas, dado o caráter subjetivo da avaliação técnica. Da forma que está posto na nova lei este risco desaparece. A técnica superior permite apenas ao seu detentor ter a oportunidade de poder baixar seu preço.
Por outro lado, para as pequenas compras, os mecanismos de compra serão simplificados. Nessa direção, os cadastros, preferivelmente eletrônicos, serão valorizados. O cadastramento prévio de fornecedores, dos bens, e dos preços praticados eliminará a exigência de documentação no momento da licitação; padronizará um número maior de produtos; tornará os preços de mercado mais facilmente acessíveis e conhecidos; permitirá cadastramento automático de quem se habilita para a licitação; tornará possível a verificação direta e eletrônica dos certificados negativos de débitos.
Este cadastramento, assim como os demais dispositivos da nova lei, tornarão muito mais rápida a compra, diminuirão os custos de fornecer ao Estado, tornarão as licitações mais simples; reduzirão a oportunidade de recursos judiciais; simplificarão a exigência de documentos de habilitação na coleta de preços e nas concorrências.
Finalmente, a nova lei dará ao Estado maiores garantias de que a obra ou serviço sejam efetivamente realizados nos prazos determinados. A 8666, na forma como foi aprovada originalmente pelo Congresso, garantia vantagens excessivas aos maiores empreiteiros ao estabelecer exigências pesadas de qualificação técnica. O veto dessas exigências levou a questão para o extremo oposto, permitindo, em certas situações, que fornecedores sem qualificação técnica se apresentassem. Estas empresas têm maior tendência a não completar a obra, inclusive porque costumam apresentar preços inexeqüíveis. O problema não se resolve pela aceitação ou rejeição do veto. A nova lei deverá resolver este problema de forma equilibrada.
A idéia é exigir do fornecedor comprovação de que tenha realizado obras ou serviços compatíveis com o objeto da licitação, podendo considerar o somatório de até cinco contratos.
O objetivo da lei é permitir que o Estado compre pelo preço de mercado mais do que o menor preço, especialmente se esse menor preço for um preço inexeqüível. Serão, assim, estabelecidos critérios mais objetivos para excluir os preços inexeqüíveis.
Na mesma direção de se garantir a execução do contrato - coisa que é importante nas obras e especialmente importante nas concessões de serviços públicos que também devem ser licitadas - e valoriza-se o "performance bond", que, caso exigido no edital, poderá substituir todas as garantias, no caso de obras, bem como toda a documentação relativa à qualificação técnica e econômico-financeira. Como a obtenção deste tipo de seguro depende muito mais da qualidade e confiabilidade da empresa do que seu tamanho e capacidade financeira, não estarão sendo penalizados os pequenos e médios empreiteiros de qualidade. O segurador não terá dificuldade em segurar uma empresa relativamente pequena que tenha competência técnica e tenha ganho a concorrência. O seguro que privilegia a grande empresa é o "bid bond", que a lei não preverá.
Será permitida a inclusão de esquema de financiamento nas concorrências a empresas públicas ou sociedades de economia mista que possam gerar receitas capazes de amortizar os financiamentos, desde que seu custo esteja claramente explicitado. Será obrigatória a aceitação de empresas em consórcio. Será explícita a permissão de fixação de preço máximo, como inibidor de preços elevados em situações de menor competitividade. Admitir-se-á a participação de empresas recém-constituídas na licitação, mediante a apresentação de balanço de abertura. Será aumentada a pena para os casos de conluio entre licitantes ou corrupção de licitantes.
Todos esses dispositivos farão da nova lei uma lei de licitação mais moderna, mais gerencial, de acordo com o Estado moderno e eficiente que queremos construir, de acordo com a reforma administrativa que está proposta no Plano Diretor da Reforma do Estado, aprovado pelo Presidente da República em 1995 e publicado pela Imprensa Oficial.
As comissões de licitações terão mais autonomia e maior responsabilidade. A complexidade do processo de licitação será proporcional ao objeto de compra. O processo de licitação será mais rápido e mais barato. O Estado e as empresas públicas que afinal não forem privatizadas poderão comprar a melhor preço, com maior rapidez, e com custo menor, sem prejuízo dos controles que a res publica exige. Pelo contrário, esta estará sendo protegida na medida que o dinheiro do contribuinte estará sendo melhor empregado.