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Compromisso e Compromisso
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de São
Paulo, 15/04/98
Quando eu tinha oito anos perguntei a meu pai: "O que é política?".
Sua resposta foi firme e simples: "É a arte do compromisso". Sempre entendi,
que ao dizer isto, ele estava afirmando que a política é a arte do acordo, das
concessões mútuas, da capacidade de construir maiorias através de coalizões
políticas. Meu pai foi político, nos anos 40 e 50 admirava Getúlio Vargas, embora tenha
lutado contra ele em 1932, porque o sabia um estadista. E nenhum político foi mais capaz
de fazer compromissos do que ele. Mas jamais deixou de ter clara noção da dignidade e da
responsabilidade de seu cargo, e do sentido de sua ação política. Queria estabelecer as
bases de uma nação industrial, desenvolvida e independente, e foi fiel a sua missão -
ou a seu compromisso.
Sim, porque em português, diferentemente do inglês, a palavra
compromisso tem dois sentidos: o de concessões mútuas, acordo, compromise, e o de
comprometimento pessoal, de decisão de cumprir determinada promessa, de commitment.
Ora, é possível, ao mesmo tempo, fazer compromissos e cumprir compromissos. Foi isto que
tornou Getúlio Vargas provavelmente o maior estadista brasileiro da primeira metade deste
século, apesar da nódoa representada por seu período autoritário. Ele fez os acordos
que tinha que fazer para garantir o poder, mas jamais perdeu o sentido do trabalho que
estava realizando, e não fez nenhuma concessão de ordem ética, jamais se corrompeu em
nome do poder.
Relato estes fatos e lembranças pessoais diante da reação da
imprensa ao duro processo pelo qual passou o Presidente Fernando Henrique Cardoso na
recente reorganização de seu ministério, dada a desincompatibilização de um grande
número de ministro que concorrerão a cargos eletivos em outubro próximo. O Presidente,
conforme Sérgio Abranches nos diz, comanda uma "presidência de coligação",
diferente da "presidência imperial" americana. Nos Estados Unidos, mesmo que o
Presidente não tenha a maioria no Congresso, não constitui seu ministério em função
dos partidos (só há dois), nem dos estados de que são originários os candidatos. Tem
plena liberdade para nomear "the best and the brigthest". No Brasil, seja porque
o sistema eleitoral praticamente impede que o partido do presidente tenha a maioria dos
assentos no parlamento, seja porque a cultura política brasileira, ainda dominantemente
clientelista, está baseada na troca direta de ativos políticos, o presidente não tem
essa liberdade. Se quer governar, se quer estabelecer as maiorias necessárias para
executar sua política de governo, não tem outra alternativa senão fazer compromissos.
Fernando Henrique sabe muito bem disto, mas também tem muito claro
duas coisas: quais são os limites do compromisso, e qual o sentido do seu governo. Por
isso escolheu um ministério que atendeu, sim, aos partidos, que envolveu concessões, mas
que em nenhum caso compromete seu objetivo maior: reformar as instituições do Brasil, de
forma a tornar este país mais moderno, mais desenvolvido, internacionalmente mais
competitivo, e internamente menos injusto. Nenhum dos ministros lhe foi imposto. Pelo
contrário, em alguns casos foi ele que tomou a iniciativa de dizer para o partido:
"se vocês indicarem este nome, eu nomeio". Conforme a imprensa reportou, foi o
caso do novo Ministro da Agricultura. Em outro caso, foi-lhe oferecida pelo PMDB uma lista
como excelentes nomes, e o Presidente, depois de entrevistá-lo, escolheu aquele que lhe
pareceu o mais adequado: o Senador Renan Calheiros, que acabou sendo a nomeação mais
controversa, porque teria apoiado Collor. Ora, o jovem senador alagoano foi dos primeiros
a romper com Collor, antes de terminar o primeiro ano de seu governo. Outros políticos
dignos de respeito o apoiaram até o momento do seu impeachment, ou quase. Não é
jurista, mas é um político hábil e bem preparado. E em ministérios fundamentais como
os da Saúde e o do Trabalho escolheu sem fazer qualquer compromisso homens públicos de
reconhecida competência.
Em outras palavras, a imprensa e a oposição, a última por dever
de ofício, a primeira - ou melhor, uma parte dela -, porque insiste em ver a política
sob a ótica de uma verdade e de uma moral absolutas, de que seria detentora. Por
coincidência, ou provocado - não importa - o Presidente deu uma aula inaugural em que
afirmou que "há uma diferença de natureza entre poder e conhecimento". E
lembrou a clássica distinção de Max Weber entre a ética da responsabilidade, que é a
ética do homem prático, do político, que leva em conta as conseqüência dos atos e
suas inter-relações, e a "ética da convicção", que é a ética dos
pregadores ou dos doutrinadores, daqueles que se orientam por valores finais ou absolutos,
sobre os quais não pode haver compromisso. Ora, um presidente, um homem de Estado, deve
ter sus convicções, mas é obrigado a agir de acordo com a ética da responsabilidade.
Na verdade a ética da convicção é perigosa. Mesmos para os
intelectuais, cuja ética é a da verdade, da descoberta científica, é perigoso estar
excessivamente convicto da sua própria verdade. Facilmente esta atitude descamba para a
intolerância e o autoritarismo. Cada profissão tem sua própria ética, mas esta deve
ser sempre uma ética da responsabilidade, que considera as demais: o cientista tem a
ética da verdade; o moralista, a da justiça; o político, a do poder; o empresário, a
da inovação e do lucro; o trabalhador, a da remuneração ou do salário justo; o
administrador, a da eficiência; o artista, a do belo. Não há hierarquia absoluta entre
essas éticas, há a hierarquia particular que cada profissão ou que cada indivíduo
estabelece, e a hierarquia geral e imprecisa que os princípios morais da sociedade
sancionam.
O Presidente Fernando Henrique, ao adotar a ética da
responsabilidade, ao agir primeiramente como um político que tem que preservar e exercer
o seu poder, está sendo coerente consigo mesmo. Ele não pode adota a ética do
intelectual, do sociólogo, que ele também é, porque sabe que a política é duplamente
a arte do compromisso: a arte de fazer acordos, e a arte manter seu compromisso com a
nação. Que para realizar seu grande projeto, para implementar as reformas que tornarão
este país mais desenvolvido, mais competitivo internacionalmente, mais democrático, mais
civilizado e menos injusto, é preciso, de um lado, reformar o Estado, tornando-o mais
eficiente no uso dos recursos fiscais escassos e assim mais capaz de garantir os direitos
sociais, e de outro é preciso compor maiorias, é preciso debater com a sociedade,
oferecer a ela sua visão de futuro, o rumo que está sendo trilhado, e caminhar
efetivamente em sua direção. Em outras palavras, para realizar um grande governo, como
bem sabe o Presidente, é preciso fazer compromissos para manter seus próprios
compromissos.
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