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O Critério Nacional

Luiz Carlos Bresser-Pereira


Folha de São Paulo, 07/02/99

Como todos os brasileiros ficarei feliz se "Central do Brasil" ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. É um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma obra prima, com uma temática ao mesmo tempo muito brasileira e absolutamente universal. Não fica a dever a nenhum filme estrangeiro que vi nos últimos anos.
Entretanto fico incomodado quando vejo a importância que os brasileiros estão dando a esse eventual prêmio – importância que se reflete na mídia, e que mais recentemente se concentrou no receio de que "A Vida é Bela", filme muito inferior mas com um apelo melodramático mais fácil e um esforço de marketing maior, possa ganhar o prêmio. Afinal qual a importância de um filme brasileiro ganhar um Oscar? Quanto aos benefícios comerciais, não há qualquer dúvida – e não são para se desprezar. Mas além disso, o que há mais? Até que ponto estará o Brasil ou estarão os brasileiros "consagrados" por esse prêmio? Afinal, qual a legitimidade da Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood para conferir prêmios que realmente signifiquem alguma coisa?
A legitimidade é muito pequena. "Central do Brasil" é um filme muito melhor do que a maioria dos filmes que ganharam o Oscar – não apenas o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas o de melhor filme americano (ou em inglês). Ainda que tenha me divertido ao assistir ao último ganhador do Oscar, "Titanic", existe pouca dúvida de que a qualidade artística deste filme brasileiro é incomparavelmente maior. Os critérios de concessão do Oscar têm melhorado nos últimos anos, têm deixado de ser exclusivamente comerciais, mas continuam, no mínimo, discutíveis. Faz pouco sentido a importância que está sendo dada no Brasil a essa possível premiação.
Faz pouco sentido, mas é um fato. Um fato que a meu ver reflete o subdesenvolvimento cultural do povo e das elites brasileiras. A falta de um critério nacional para julgar sua própria produção. A necessidade de se legitimar no exterior. A crença difusa que os povos ricos do Norte sabem melhor do que nós distinguir o certo do errado, o belo do feio, a verdade do engano. Em outras palavras, reflete o que Roland Corbisier chamava, há muitos anos, de "complexo cultural colonial", e que eu tenho chamado "complexo de inferioridade colonial". Imaginávamos, porém, que, com o desenvolvimento econômico, superássemos, aos poucos, essa atitude culturalmente subordinada. Infelizmente esta previsão não se confirmou, apesar de todo o progresso econômico havido.
Continuamos, no Brasil, muito preocupados em saber como nos vêem lá fora. E indignados porque sabem pouco do Brasil, porque pensam que somos apenas o país do futebol e do Carnaval. Insistimos em uma política ou em um jogo de construção de confiança (ou melhor, em inglês, de confidence building game, já que nosso interesse é principalmente o de agradar Washington, Nova York ou Los Angeles...), em todas as áreas de nossa ação, e para isso nos subordinamos a seus critérios de verdade, de justiça e de beleza, ao invés de tratar de saber o que é verdadeiro, o que justo e o que é belo para nós, nas nossas circunstâncias. Em conseqüência muitas vezes cometemos erros fatais e nos subordinamos de forma patética.
É claro que temos muito a aprender com os demais países. Aliás, temos tudo a aprender. Mas daí não se segue que eles se transformem em critério para nossa ação, para nossa auto-estima e, mais amplamente, para nosso auto-respeito. Afinal, não há nenhuma razão para que lá fora saibam melhor do que nós o que devemos fazer e pensar aqui.
No presente caso o absurdo da situação torna-se gritante, porque a obra que se espera ver "consagrada" é um filme que não tem um fiapo de subordinação cultural, é um filme que usa os nossos critérios estéticos e não os de Hollywood, que emprega os nossos recursos limitados ao invés de orçamentos nababescos. Se somos capazes de fazer um filme como este; se, em muitas ocasiões, somos capazes de fazer cinema, teatro, desfile de escola de samba, música, literatura, esporte, ciência "de primeiro mundo", que não fica a dever ao que há de correspondente nos países desenvolvidos, por que dar tanta importância a instâncias de consagração cuja maior legitimidade está em ser estrangeira?
Mas será que estou de volta ao tempos do velho nacionalismo? De forma alguma. Sei dos enormes interesses comuns que temos com os demais países desenvolvidos, sei que o jogo que existe entre países desenvolvidos e em desenvolvimento é um jogo de soma maior do que zero, não aceito velhas teses sobre o imperialismo que nos rodearia e ameaçaria. Quero que o Brasil participe desse grande mundo, aprenda com ele, e seja competitivo tanto no campo econômico quanto no cultural.
Mas tenho uma imensa dificuldade em adotar como critério de nossa ação e de nossa avaliação um critério estrangeiro. Nosso critério há de ser nacional. Precisa partir da nossa realidade e das nossas necessidades. Deve considerar os valores universais, não pode prescindir da participação de especialistas do exterior para que possamos avaliar a nossa produção artística ou científica, nossa política econômica ou tecnológica. Mas não pode se subordinar nem a avaliadores nem a critérios que não sejam os nossos.
Nada garante que usando os nossos critérios, para avaliar e decidir sobre a nossa realidade, tomemos as decisões mais acertadas, produzamos a melhor cultura, desenvolvamos a melhor ciência, adotemos as melhores políticas públicas. Podemos muito facilmente também errar. Mas é melhor errar a partir da nosso próprio julgamento, do que subordiná-lo a terceiros. A busca da identidade nacional é a recusa da inautêntico, do postiço, é o auto-respeito que se expressa no respeito aos outros. "Central do Brasil" é uma expressão soberba de nossa própria identidade. Será valorizada por qualquer prêmio adicional que receba. Mas seu valor maior é aquele que deriva do respeito que temos por nós mesmos.