header_y.gif (2220 bytes)menu_lc_articles.gif (2681 bytes)



O Calvário de Chico Lopes


Luiz Carlos Bresser-Pereira


Folha de São Paulo, 21/04/99

Para os homens e mulheres dotados de verdadeiro espírito público a vida política é às vezes origem de grandes alegrias, outras vezes de frustrações, mas há momentos em que se torna motivo de sofrimento. É um momento como este último que está vivendo Chico Lopes, a partir de sua rápida passagem pela presidência do Banco Central. Primeiro foi a acusação de mal economista, dada a forma que adotou para iniciar a desvalorização cambial, depois as suspeitas de ter favorecido os bancos Marka e Fonte-Cindan de forma equivocada, e finalmente a insinuação de que sua demissão no BC estaria relacionada com o caso. Ora, conheço bem Chico Lopes, tive o privilégio de trabalhar com ele em 1987, e não tenho qualquer dúvida, primeiro, de que é um dos mais notáveis economistas de que o país dispõe, e, segundo, que se trata de um homem impoluto, que vem dedicando toda a sua vida à causa pública, tendo como modelo seu pai, Lucas Lopes.
Uma crítica que Chico Lopes pode merecer diz respeito à fórmula que usou no momento da desvalorização. Mas a questão se esclarece se entendermos que ele queria uma banda muito mais larga. Nesse caso a fórmula poderia fazer sentido. Como só logrou uma desvalorização inicial de 8 por cento, a fórmula deixou de fazer sentido. Mas, em relação à sua competência como formulador de política econômica, o mais importante é creditar-lhe o fato de que foi ele o primeiro, dentro do Banco Central, depois da crise da Rússia, a reconhecer a necessidade de desvalorizar o real, e a defender essa posição firmemente a partir desse momento. O país deve muito a Chico por essa atitude corajosa, de cujos frutos estamos agora começando a nos dar conta. A crise aguda da desvalorização, que lhe custou o cargo, já está passando; a inflação está sob controle; o câmbio tende para a posição de equilíbrio consistente com uma desvalorização real de aproximadamente 20 por cento; e a taxa de juros, que, na hora da crise, ele queria mais baixa, em oposição direta ao FMI, está agora sendo competentemente reduzida pela nova equipe no Banco Central.
Uma segunda crítica diz respeito à sua decisão e de sua diretoria de socorrer os dois bancos que haviam especulado, apostando que o real não seria desvalorizado. Por que favorecer os bancos? Não há dúvida que alguma intervenção era necessária, já que havia, como a própria BMF reconheceu, um risco de "crise sistêmica". Crise esta que envolvia a própria bolsa, por mais que neguem seus dirigentes, por motivos óbvios, e o Banco Central, para não pôr mais lenha em um mercado que ainda não está plenamente estabilizado, necessitando melhor institucionalização. Os bancos que haviam apostado contra a desvalorização estavam vendidos em contratos futuros em mais de 2 bilhões de reais. Com uma desvalorização de 50 por cento, teriam que recolher na BMF ajustes de margem da metade desse valor para mantê-la líquida, valor que ela obviamente não dispunha. Ficava assim ameaçada, a não ser que o próprio Banco Central a socorresse e depois cobrasse o prejuízo de seus sócios. Esta foi uma alternativa que foi posteriormente ao socorro aventada. Seria uma melhor solução, mas naquele momento, no sufoco da crise, seria de difícil senão impossível implementação. Naquele instante o que era essencial era impedir uma crise sistêmica, e foi isto que o governo fez.
Finalmente temos a denúncia da Veja. Lendo a notável reportagem, ainda que a única evidência disponível é o testemunho daqueles que ouviram a história do próprio banqueiro, parece provável que o Marka contava com um informante. Como parece também lógica a razão que o levou a falar: queria justificar-se do erro cometido perante depositantes dos fundos por ele geridos. Mas está claro que contava com um informante mal informado, que, portanto, não podia ser o Presidente do Banco Central. E, diante da insinuação de que a demissão de Chico Lopes teria alguma relação com o problema, o Presidente da República foi enfático ao desmenti-la, e em afirmar sua confiança na honradez e na competência do economista, ao mesmo tempo que manifestava sua indignação e ordenava investigações completas sobre o caso com vistas a punir os verdadeiros responsáveis.
O calvário de Chico Lopes, porém, ainda não terminou. Parece que querem obrigá-lo a provar que é honesto, ao invés de apresentar evidências contra ele que não existem. Ora, não há nada mais grave do que isto. Todos temos direito à nossa honra, até prova em contrário. Este é um princípio fundamental do Estado de direito, um requisito da democracia. Na vida pública é sempre essencial distinguir os honestos dos desonestos, os que se dedicam à causa pública dos que a usam como negócio. Chico Lopes está na primeira categoria. Cada um de nós pode discordar das decisões que tomou, mas não pode negar que as tomou em função do interesse público. E mais, não pode negar que ele as tomou com coragem ao lutar pela correção do câmbio. Conforme ele declarou à Veja, no número seguinte ao da reportagem inicial: "Eu fiz o que tinha que ser feito. Carreguei essa mudança sozinho, o que me rendeu um custo político grande. Se, na época, tivesse pensado em mim, não teria feito a mudança do câmbio. Só fiz pelo país".