 |

As Pessoas e as Coisas
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de São
Paulo, 15/06/99
As idéias exigem debate, os fatos, investigação, já os
indivíduos os homens e as mulheres têm direito ao respeito. Suas idéias
podem e devem ser discutidas, suas ações avaliadas, mas enquanto seres humanos são
portadores de direitos inalienáveis, ao contrário das idéias e das situações. Não
obstante, o que vemos hoje por parte de uma certa oposição de esquerda, que se pretende
justa, e por parte de uma certa imprensa, que se pretende crítica, é um moralismo
autoritário que violenta os direitos mais elementares do cidadão.
Além de eleições regulares, nada mais importante em uma
democracia do que uma oposição atuante e uma imprensa crítica. O principal papel tanto
de uma como de outra é criticar: criticar o governo e seus erros, e, mais amplamente,
criticar a sociedade e suas injustiças e privilégios. Nesse papel nem a oposição nem a
imprensa precisam comprovar sua crítica. Basta que argumentem. Que critiquem o governo
porque sua política econômica está equivocada, porque sua política científica não
atende às necessidades do país, que critiquem as idéias dos governantes (ou, mais
genericamente, de seus adversários políticos) porque não garantem uma maior igualdade,
ou porque não são democráticas, ou seja pelo que for. E não precisam provar ou
demonstrar de forma documentada o que afirmam. Basta a argumentação, que poderá e
deverá ser rebatida pelo governo. Afinal, se a argumentação e as evidências
apresentadas forem convincentes, ainda que não provem definitivamente nada
inclusive porque na maioria dos casos não é possível ou não é o caso de provar
a oposição ganhará legitimamente a opinião dos eleitores, e seus candidatos serão
eleitos na próxima eleição. Da mesma forma, se as notícias apresentadas pela imprensa
que aqui estou supondo não serem distorcidas ou enviesadas apresentarem
informações e críticas relevantes, o jornal ganhará mais leitores e maior
credibilidade.
Quando, então, surge a violência contra a democracia?
Quando os direitos civis mais elementares dos cidadãos são violentados? Quando essa
prática da crítica sem provas - no máximo com evidências circunstanciais se
dirige contra as pessoas, e não contra as idéias ou os fatos. Ou, em outras palavras, ao
se confundir seres humanos com coisas, reificando-os. Quando, sem notar a distinção
essencial entre pessoa e coisa, essa imprensa e essa oposição, no mesmo ritmo e da mesma
forma que criticam legitimamente idéias e fatos sem apresentar provas, atacam ou fazem
insinuações contra a honra de quem está no governo. Em certos casos usam para isto
fatos distorcidos, mas, mesmo quando isto não acontece, quando os fatos de que dispõem
são verdadeiros mas não comprovam nada, a imprensa (sensacionalista) em busca de
leitores e a oposição (oportunista) em busca de eleitores, ambas distorcem a
interpretação dos fatos para poderem fazer sua crítica às pessoas portadoras de
direitos com os mesmos critérios que usam para criticar as idéias e os fatos.
Dessa forma, agem de forma antiética, porque
violentam o direito inalienável que cada um de nós tem ao respeito dos outros, e
antidemocrática, porque fazem tábua rasa dos direitos de cidadania que estão na base da
democracia.
Mas não é bem assim, defendem-se os opositores
moralistas que se imaginam justos. Eu só afirmo ou, melhor, insinuo, porque afinal
sou uma pessoa cuidadosa que uma pessoa é corrupta quando tenho provas. Mas,
quando coisas e pessoas são tratadas igualmente, esta justificativa necessariamente não
se sustenta. As tais provas são quase sempre inexistentes, e o próprio acusador o
reconhece, tanto assim que no dia seguinte esse moralista severo e implacável está
cumprimentando alegremente o acusado de corrupção e esperando dele retribuição. As
pessoas que sabemos corruptas, quando não podem ser condenadas, devem pelo menos ser
evitadas.
Não é assim, diz também a imprensa oportunista que se
julga crítica e, nesse momento, posa de liberal. Quando faço críticas ou acusações
estou usando da liberdade de imprensa. Vocês por acaso pretendem estabelecer a censura
prévia? Ao invés disso quando nós caluniamos, injuriamos ou difamamos ou melhor,
quando vocês, acusados, pensam que estamos fazendo isto é muito simples:
respondam, defendam-se, que publicaremos sua defesa... Ora, pode até ser verdade que o
espaço para a resposta esteja aberto, mas desde quando a difamação é sanada com a
defesa do difamado?
E concluem os nossos dois heróis da sociedade mediática
e amoral: criticar as pessoas, como se criticam as idéias ou as situações, é essencial
para a democracia, e, afinal, não faz mal a ninguém. Só faria, concluem, de maneira
pateticamente contraditória, se a opinião pública desse ouvidos a pessoas
desprezíveis, que criticassem por motivos desprezíveis o que não acontece. Mas
então, depreendo eu: se os nossos dois modelos de acusadores não são eles próprios
desprezíveis como certamente assim não se julgam e não são assim julgados
o mal que produzem é imenso, quando não irreparável.
No plano das idéias tudo é possível, todo o debate é
legítimo. Até os mais absurdos. Sempre temos argumentos. O que estou afirmando,
entretanto, é a imoralidade de se confundir o plano das coisas com o plano das pessoas, o
plano das idéias e das opiniões com os dos direitos de cidadania, o plano dos fatos com
o direito ao respeito. Nunca vi essa distinção ser feita com clareza. Eu próprio não a
tinha clara para mim até há pouco tempo. Por isso estava sempre disposto a defender de
forma genérica o direito à crítica.
Entretanto, quando vi essa crítica, que no passado
atingiu pessoas que eu pouco conhecia, atingir agora pessoas próximas a mim, aconteceu
comigo uma coisa que é comum ocorrer para todos nós: diante do problema pude pensar
melhor. E ficou clara para mim a distinção essencial entre as duas situações, como
ficou clara a violência que isto representa ao sagrado direito que temos à nossa
própria honra. Um direito que vale em qualquer circunstância no plano moral, mas que
vale duplamente no plano político, porque o que está em jogo é a própria legitimidade
das instituições democráticas, é a garantia de podermos conviver, discordar e debater
de forma civilizada.
|