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A Diferença está no Debate

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de São Paulo, 20/12/99

Depois de quase quatro meses na Europa, a maior parte em Oxford, perguntei-me: qual é a maior semelhança entre o Brasil e a Inglaterra? Ou entre a América Latina e os países avançados? E a resposta foi imediata: a crítica. Tanto nós como os ingleses estão permanentemente criticando o governo, as instituições, os costumes. Mas a semelhança é mais aparente do que verdadeira. Os ingleses como os demais europeus, criticam mais sua sociedade e seu governo do que nós latino-americanos. E fazem uma crítica que leva ao debate, enquanto a nossa crítica, não. Nós também pensarmos estar debatendo, mas como o desrespeito pelo adversário é freqüente, não há verdadeiro debate.
O debate civilizado é uma característica fundamental das sociedades mais avançadas. Ele é fundamental não apenas para garantir o caráter democrático do Estado, é essencial também para evitar que erros de políticas públicas se repitam. O acordo, na hora do debate não é essencial. Na prática, raramente acontece. Mas os debatedores que revelaram respeito pelas regras do debate democrático e pelas idéias dos adversários, terão inevitavelmente aprendido algo que poderá ser usado no futuro.
É certo que o objeto da crítica em um e outro país é muito diferente. Os países avançadas em geral, possuem uma economia rica, uma população educada e bem cuidada, e uma economia dinâmica, cuja renda por habitante cresceu, nos últimos 20 anos a uma taxa de 2,5 por cento ao ano (países da OCDE). Nós temos uma sociedade pobre, escandalosamente injusta, e quase estagnada do ponto de vista econômico: nossa taxa de crescimento per capita no mesmo período foi de 0,7 por cento ao ano; a da América Latina, 0,5 por cento ao ano.
O objeto é diferente, mas quero sugerir que existe uma forte relação entre a falta de debate democrático nos países latino-americanos e seu fracasso em alcançar e manter taxas de crescimento econômico maiores ou pelo menos iguais às dos países ricos. Se na sociedade brasileira houvesse maior common ground, ou seja, um conjunto de valores e crenças comuns e principalmente de regras presidindo o debate, teríamos um melhor Estado e melhores governos – e nossos resultados no plano econômico e no social seriam melhores.
O sonho da convergência das taxas de desenvolvimento, a esperança que cresceríamos mais depressa que os países desenvolvidos, ainda vive na cabeça das pessoas, mas os últimos 20 anos desmentiram aquele sonho de maneira cabal, como mostra a tabela. Nos 30 anos anteriores o Brasil estava crescendo a uma taxa ligeiramente superior à da América Latina (3,9 por cento ao ano contra 3,3 por cento), mas a América Latina como um todo já perdia terreno, crescendo a 2,3 por cento. A partir de 1980 foi o desastre que os números revelam.
Taxas Anuais de Crescimento da Renda por Habitante Comparadas

 

OECD

América Latina

Brasil

1950-79

3.3

2.3

3.9

1980-98

2.5

0.5

0.7

Fonte: CEPAL, OECD.

E no entanto a teoria econômica neoclássica nos diz que se tivermos mercados razoavelmente livres haveria convergência. Mas é pouco provável que sejam as imperfeições dos mercados que expliquem o fracasso dos países latino-americanos em convergir internacionalmente. Não há dúvida quanto à proteção dada pelos países a suas empresas quando sua produção não é competitiva, nem quanto à proteção estrita que dão ao seu conhecimento tecnológico, nem muito menos quanto ao fechamento dos mercados de trabalho. Certamente estas imperfeições contribuem para que cresçamos a taxas mais lentas do que as deles. Mas não explicam porque a diferença é tão grande.
Sabemos muito bem que as taxas de crescimento caíram acentuadamente na América Latina nos anos 80 porque o Estado Desenvolvimentista entrou em crise terminal, uma crise marcada pela sua insolvência internacional, e pelo desequilíbrio macroeconômico. A crise logo foi em seguida identificada, e medidas foram tomadas para o corrigir a situação, a partir principalmente da pressão internacional. Ajustamento fiscal foi empreendido, a excessiva regulação dos mercados foi diminuída, reformas orientadas para o mercado foram realizadas. E no entanto, o desenvolvimento não foi retomado.
Não o foi porque não se logrou o equilíbrio macroeconômico na maioria dos países latino-americanos. As altas taxas de inflação foram controladas, mas às custas de câmbio valorizado e de altíssimas taxas de juros. No Brasil, só depois de ter sido permitida a flutuação do câmbio, em janeiro passado, estabeleceram-se afinal as bases para o equilíbrio macroeconômico.
Por que temos tanta dificuldade em alcançar a estabilidade macroeconômica, que é fundamental para a retomada do desenvolvimento? Há dois saberes convencionais e opostos a respeito: o dos países ricos: não alcançamos estabilidade porque não fizemos as reformas; e o do velho nacionalismo: não logramos estabilizar nossas economias porque fizemos as reformas.
A primeira explicação é falsa porque na América Latina fizemos muitas reformas. Algumas melhoraram a situação, principalmente a abertura comercial. Outras revelaram-se indiferentes à estabilização. E algumas foram selvagens e/ou desastrosas, como ocorreu com quase toda a privatização na Argentina, e com a privatização dos bancos e das empresas de telecomunicações no México.
Há, todavia, alguma verdade nesta sabedoria convencional: algumas reformas essenciais de fato não foram realizadas. Isto ocorreu com a reforma da previdência social, e com a reforma tributária. A primeira deveria eliminar privilégios, a segunda tornar os impostos mais simples e progressivos.
Quando à sabedoria convencional nacionalista, não sei de nenhuma reforma que tenha dificultado a estabilização macroeconômica. Podem ter tido efeitos negativos para a formação de capital nacional, provocando desnacionalização, mas não sobre a estabilidade. A abertura comercial, por exemplo, que era necessária, teve um efeito negativo não previsto: em diversos países foi irresponsavelmente acompanhada por valorização do câmbio que inviabilizou grande número empresas nacionais.
Houve, entretanto, de decisões incompetentes em relação à taxa de câmbio e à taxa de juros que, estas sim, muitas vezes inviabilizaram a estabilização. Foram decisões de política econômica, não reformas institucionais. Mas foram desastrosas.
Decisões equivocadas, tomadas geralmente com apoio de Washington e Nova York, a quem se queria agradar a todo custo para se alcançar "credibilidade", explicam em grande parte a quase-estagnação latino-americana. Foram decisões de política macroeconômica caracterizadas pela estratégia do "confidence building", como venho afirmando há anos, ou pelo "confidence game", como Krugman recentemente observou para explicar a crise asiática.
Em síntese, estes erros têm três origens. Além da pressão dos grupos de interesse, que é sempre lembrada, temos a incompetência dos formuladores de política macroeconômica, que é invariavelmente esquecida, e a estratégia do "confidence building game", sempre cautelosamente ignorada. Em outras palavras, as decisões errôneas são tomadas (ou as decisões certas são deixadas de serem tomadas) porque há interesses contrários de burocratas, de capitalistas, da classe média. Ou porque a incompetência dos governantes leva a decisões equivocadas mesmo quando os interesses estão neutralizados. Ou porque Washington e Nova York entendem que determinada política é aconselhável e nós aceitamos a sugestão para lograr confiança.
O que fazer? A primeira resposta é criticar mais, e mais objetivamente, de forma a abrir o debate e permitir o aprendizado. E jamais desclassificar o debatedor. Só assim haverá aprendizado, evitando-se a repetição ou a perpetuação dos erros.
Por exemplo, nos anos 70 a América Latina endividou-se com efeitos desastrosos; nos anos 90 voltou a endividar-se, com efeitos também lamentáveis. Não aprendeu e repetiu o erro.
Conversando com uma notável professora de Oxford, Rosemary Thorp, disse-lhe que não entendia porque os ingleses criticavam tanto seu governo e sua sociedade, se sua situação já é tão boa. Ela não hesitou um segundo em responder. "Nossa situação é boa exatamente porque criticamos e debatemos tudo".
Não se constrói uma sociedade civil equilibrada e um estado democrático e forte de um dia para o outro. Por isso nossos governos são quase sempre precários. Mas se as elites e o povo perceberem que a crítica é necessária, que o debate respeitoso é fundamental, que a desqualificação do adversário é inaceitável, teremos melhores governos, que construirão um melhor Estado, dotado de melhores instituições, e aí poderemos pensar em convergência econômica com os países avançados.