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Chapéu Alheio

Luiz Carlos Bresser-Pereira

O Estado de São Paulo, 31/01/2000

O decreto de 28 de dezembro do Governador Mário Covas, dotando o estado de São Paulo de instrumento legal para neutralizar a guerra tributária movida por outros estados é um ovo de Colombo econômico. Através dele a prática dos outros estados de dar incentivos com chapéu alheio – ou seja, de dar incentivos que deixam de constituir receita fiscal para os estados consumidores, e não para o estado onde se instala a indústria beneficiada – é neutralizada. Se um estado quiser dar incentivo fiscal, que o faça, mas arque inteiramente com o respectivo custo.
Desde o início do seu primeiro governo, Covas e seu secretário da fazenda, Yoshiaki Nakano, vêm criticando a guerra fiscal. A crítica óbvia que faziam era a de que, através dela, se ofereciam benefícios indevidos a empresas, com redução da capacidade tributária de estados quase todos enfrentando graves problemas fiscais. Além disso desorganizava-se o mercado com a competição predatória por parte da empresa beneficiada, estimulando a evasão fiscal e distorcendo a alocação de recursosA estes dois argumentos, porém, acrescentaram um terceiro ao qual se prestou pouca atenção. Os estados guerreiros atacam com as armas do adversário, fazem favores a empresas oportunistas às custas dos demais estados.
O sistema é muito simples. Vamos supor que uma empresa venda 250 milhões de reais, dos quais 20 por cento em seu estado, e o restante para os demais estados. Vamos supor ainda que ela seja responsável por 40 por cento do valor adicionado total do produto produzido, ou seja, por 100 milhões de reais. Sobre estes 100 deveria pagar 18 milhões de ICMS, mas recebe do estado em que se localizou, um incentivo fiscal de 50 por cento, pagando apenas 9 milhões de ICMS, embora incluindo na nota fiscal e portanto no preço que será pago pelo consumidor todo o ICMS, ou sejam, os 18 milhões. Desta forma o estado que concedeu o incentivo arca com apenas 20 por cento do custo, ou seja com 1,8 milhões, que renuncia de fato a receber, enquanto todos os demais estados arcam com a diferença, deixando de receber 7,2 milhões. Esta mágica ocorre porque, ao atravessar a fronteira, a empresa revendedora no estado de destino credita-se do total de ICMS que deveria ter sido pago, já que este está lançado na nota fiscal, e não apenas do valor que a empresa produtora efetivamente recolheu. Nesse momento, o custo de 7,2 milhões em receitas fiscais não recebidas passa para o estado consumidor. Passa com violência, embora sem alarde.
Essa prática é ilegal, pois fere a lei complementar de janeiro de 1975 que organizou o CONFAZ. Esta previu estas práticas predatórias e considerou nulo o benefício, ineficaz o crédito fiscal e a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido, qualquer que seja o mecanismo fiscal ou financeiro utilizado.
É essa distorção absurda que o decreto de 28 de dezembro neutraliza. Ao poder gravar o produto incentivado que entra em São Paulo com a tarifa cheia de ICMS, ou seja, ao cobrar a diferença relativa ao estado de São Paulo que deveria ter sido paga e não foi pela indústria, o incentivo fiscal perde efeito. A empresa vai ter de cobrar mais caro em São Paulo pelo seu produto, e perderá a vantagem em relação às empresas sem incentivos. Se todos os demais estados, ou a maioria deles, especialmente os mais pobres que são os mais prejudicados por essa prática injusta, adotarem medida semelhante, a distorção principal da guerra fiscal desaparece. Os estados e os municípios poderão ainda dar incentivos, mas incentivos que onerem apenas os cofres do próprio estado, e não o cofre alheio, além de desorganizarem a o funcionamento do mercado e a alocação racional de recursos por parte das empresas.
O governador Mário Covas, em 1995, era contrário à reforma tributária porque sabia que a mudança da cobrança do ICMS da origem para o destino implicaria em redução de receita para São Paulo. Mas dois anos depois mudou de opinião e passou a defender com firmeza, através do seu secretário da fazenda, a reforma que a Câmara dos Deputados vai pouco a pouco a pouco conseguindo realizar, apesar da patética resistência do Ministério da Fazenda. Mudou porque viu na reforma duas mudanças essenciais para que a economia brasileira deixe de ter seus custos gravemente distorcidos pelo sistema tributário: uma era a própria tributação do imposto sobre o valor agregado no destino, acabando com a guerra fiscal; a outra, a eliminação de impostos em cascata como o Cofins e o Pis/Pasep.
O Presidente Fernando Henrique tem insistido sempre com todos os seus interlocutores, dentro do executivo e no parlamento, sobre a importância de se aprovar uma reforma tributária. Esta está caminhando. Os jornais da última semana de janeiro informam que os deputados da comissão especial afinal conseguiram um acordo do Ministério da Fazenda quanto a eliminação dos impostos em cascata, que aquele órgão insistia em manter, com medo de perda de receita. O receio é legítimo, salvaguardas e sistemas de transição devem e estão sendo incluídos, as alíquotas serão sempre matéria de lei ordinária. Assim, com a prudência necessária, os receios estão sendo superados.
O decreto de 28 de dezembro apressará a reforma. Os estados incentivadores provavelmente recorrerão ao Supremo Tribunal Federal. Mas o decreto, além de ter total justificação econômica e moral, está bem fundado juridicamente. Ora, o Supremo tem desempenhado um papel tão fundamental no equilíbrio do sistema democrático brasileiro porque sabe combinar o rigor na aplicação da lei com as considerações econômica e éticas que as inspiram. Não poderá sancionar um sistema em que o inocente paga pelo culpado, o favor é sempre feito com o chapéu alheio.