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Mr. Daley, Abraços e Cotoveladas

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo, 25/02//2000

O final do século ficará na história da economia brasileira como o momento em que, afinal, o Brasil se tornou membro pleno do sistema econômico e político internacional. Membro pleno, participante maduro de um sistema econômico – de mercado – e de um sistema político: democrático.
Para lograr este resultado demos um primeiro passo decisivo em 1984, quando restabelecemos a democracia no país; outro passo estratégico em 1994, quando o Plano Real estabilizou os preços; e, finalmente, um terceiro, em 1999, quando logramos, com êxito, que a taxa de câmbio do real flutuasse no mercado e iniciamos a queda da taxa de juros, desta forma a praticamente alcançar a estabilidade macroeconômica.
Os dois últimos passos foram entremeados de um grande esforço para reformar o Estado brasileiro e recuperar seu equilíbrio fiscal.
Por que "membro pleno"? Porque passamos a nos guiar, no plano econômico e no plano político, pelas mesmas regras dos demais participantes plenos. Isto não significa que nos tornamos desenvolvidos, nem que tenha ocorrido uma diminuição substancial do grau de injustiça existente no país. Significa apenas – e isto já é muito – que nossa economia passou a ser regulada principalmente pelo mercado e secundariamente pelo Estado, e que nossa política passou a ser o espaço público da sociedade civil e da opinião pública, ao invés de continuar a ser a área reservada de elites oligárquicas.
Há ainda muito a avançar. No plano das relações internacionais a recente visita do Ministro do Comércio dos Estados Unidos mostrou como não é com a política do "confidence building" que defenderemos nosso interesse nacional. Mr. William Daley chegou ao Brasil decidido a defender os interesses das empresas do seu país com atos e palavras. Não precisamos da arrogância de Mr. Daley, mas não há dúvida de que ou protegemos com o mesmo vigor nosso capital e nosso trabalho, ou continuaremos a ser vítimas do poder dos mais ricos.
No plano político estamos dando os primeiro passos da transição de uma democracia de elites para uma democracia de sociedade civil. As elites certamente ainda contam, mas não detêm mais todo o poder. A sociedade civil – a organização da sociedade ponderada pelos poderes respectivos de seus participantes – cresceu e democratizou-se, desta forma tornando-se mais forte. O poder político tornou-se mais difuso. As decisões dos governantes, no poder executivo e no parlamento, em todos os níveis da federação, passaram a responder mais diretamente aos movimentos da opinião pública.
No plano econômico fomos por muitos anos uma economia administrada pelo Estado mais do que coordenada pelo mercado. Para implantar o capitalismo industrial esta intervenção foi por um tempo útil. Desde o início dos anos 70, ela perdeu funcionalidade. Nos anos noventa ela foi radicalmente abandonada. Mais recentemente surgem sinais de uma retomada da regulação estatal, mas agora em termos subsidiários: o papel de coordenar a economia passou para o mercado.
O Estado continua a ter um papel decisivo como regulador, como estimulador da concorrência, e defensor do interesse nacional, mas o governo só necessita agir nesta direção pontualmente, caso a caso. Grande parte da atividade reguladora é realizada institucionalmente, pelas leis que garantem a propriedade e regem os contratos. A economia brasileira não depende mais de nenhum grande plano, de um projeto nacional. Para que haja desenvolvimento econômico basta que o Estado continue a ser gradualmente reformado e fortalecido, que a estabilidade macroeconômica e a garantia dos contratos sejam asseguradas por esse Estado, e que o governo aja de forma atenta e com senso de oportunidade na defesa dos interesses do país.
O Plano Real, em 1994, e a desvalorização do real através da sua flutuação, em janeiro de 1999, foram os dois grandes passos para que no plano econômico ganhássemos real cidadania internacional. A partir daí o Ministério do Desenvolvimento e o BNDES vem repensando a política de defesa da empresa nacional em cooperação com as agências reguladoras, e o Banco Central vem administrando a política monetária com competência, sem ortodoxia, a partir de uma meta inflacionária.
O esforço fiscal do governo continua enorme. Nossa balança comercial equilibrou-se e será certamente superavitária neste ano; o déficit em conta corrente reduziu-se de forma que pode ser financiado pelos investimentos diretos, estabilizando-se a relação dívida externa/PIB; o déficit público foi controlado, e assim a relação dívida pública/PIB também tende a estabilizar-se; a inflação está sob controle; os investimentos para substituir importações e para criar capacidade de exportação em alguns setores tornados competitivos estão aumentando, desta forma compensando, no plano da demanda agregada, a perda de poder aquisitivo dos salários causada pelo desvalorização – perda esta, que, aliás, atingiu antes as importações do que a demanda interna.
Não obstante, as consultorias estão prevendo uma taxa de crescimento do PIB entre 2 e 3 por cento para esse ano. Não tenho modelos de simulação macroeconômica a meu dispor para contrapor a estas previsões, mas elas me parecem pessimistas. O êxito da flutuação do câmbio tornou nosso mercado mais atrativo para os investidores estrangeiros; a desvalorização do real e a queda da taxa de juros abriram novas oportunidades de investimentos para os empresários nacionais. Aposto em um crescimento maior.
Este otimismo, entretanto, não significa que possamos descuidar. Ser membro pleno do sistema internacional não significa ser membro subordinado. Nem para nós, nem para qualquer país digno desse nome. Estou assistindo, em todo o país, a uma sadia renovação das idéias nacionais. Alguém afirmou que está emergindo um "neonacionalismo", que eu entendo como um nacionalismo moderado mas real.
De fato, é isto o que está felizmente ocorrendo. Estamos nos dando conta de que defender a empresa e o trabalho nacionais são temas prioritários. Só assim poderemos enfrentar os Daley que encontramos pela frente. E retribuir abraço com abraço, e cotovelada com cotovelada, como membros plenos que somos da comunidade internacional. Sempre com um sorriso nos lábios, naturalmente, porque se temos interesses conflitantes, e se sofremos violências como aquelas defendidas por Mr. Daley em sua visita, temos em contrapartida muitos interesses comuns.