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Responsabilização Equivocada
Luiz Carlos
Bresser-Pereira
Folha de
S.Paulo, 2.9.2000
Critique on CNBB's
referendum on the foreign debt.
O plebiscito que a
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) está realizando tem o mérito de
colocar na agenda de debate do país o problema do endividamento externo (da nação) e
interno (do Estado). Equivoca-se, entretanto, ao supor que a responsabilidade pelo
endividamento é dos credores e não dos que, irresponsavelmente, endividaram a nação e
o Estado. Equivoca-se mais ainda ao sugerir a moratória de ambas as dívidas, em um caso
porque teria origem fraudulenta (daí exigir-se uma auditoria), em outro, porque seria
devida a especuladores.
Não tenho a menor
dúvida sobre o espírito público e a intenção de defender o interesse nacional e o
interesse dos mais pobres da CNBB, mas, ao propor o plebiscito nos termos em que está
fazendo, ela está indo contra seus próprios objetivos: no plano externo não levará à
redução da dívida externa, mas ao aumento da taxa de risco do país e, portanto,
dos juros que pagamos sobre a dívida externa; no plano interno, premiará a
irresponsabilidade fiscal.
Não logrará a
redução da dívida externa porque não há nenhum ambiente para isto a nível
internacional. Se o governo brasileiro falar nisto, apenas levará ao aumento dos nossos
juros. Se cometer a loucura de declarar uma moratória, pagaremos por anos e anos pelo
erro cometido. Creio que tenho autoridade pessoal para dizer o que estou dizendo. Quando
fui ministro da Fazenda, o Brasil foi o primeiro país a propor formalmente um desconto na
dívida externa e a oferecer uma técnica financeira correta para viabilizá-lo: a
securitização da dívida. Naquela época, diziam que eu arriscava meu cargo. De fato o
fazia, mas eu sabia que minha proposta fazia sentido para o Brasil e para os credores.
Tanto era assim que, 18 meses depois, o Plano Brady limitou-se a adotar as duas propostas
básicas do plano brasileiro: securitização da dívida com desconto e desvinculamento no
processo de negociação entre os bancos e o FMI.
Em 1987 isso era
viável porque os bancos haviam suspendido a rolagem da dívida dos países endividados,
que, em conseqüência, entraram em moratória branca: pararam de pagar por falta de
meios. O Brasil decidiu, pouco antes de eu assumir o ministério, fazer uma
moratória ostensiva. Até hoje paga por isso.
Hoje, moratória da
dívida externa não é viável para países como o Brasil, primeiro, porque a rolagem de
sua dívida está sendo realizada normalmente; segundo, porque ninguém tem dúvida da
origem dessa dívida. Não há nada de fraudulento nela. O Banco Central a audita
regularmente. Nossa dívida externa vinha diminuindo regularmente até 1994. O que houve
em seguida foi um imenso erro das autoridades econômicas brasileiras ao terem valorizado
o real nesse ano. O êxito do Plano Real não dependia disso e de terem irresponsavelmente
mantido essa sobrevalorização até o início de 1999. Por isso o país consumiu muito
mais do que devia nesses anos, importando ou gastando em viagens internacionais o que não
podia gastar enquanto exportava muito menos do que precisava exportar.
Quanto à dívida
interna, atribuí-la a especuladores é fácil, mas irreal. Ela se deve a dois fatores: à
elevação absurda da taxa de juros real durante aqueles quatro anos, para cobrir os
credores internacionais dos riscos de uma desvalorização, que todos sabiam inevitável,
e aos déficits públicos que foram incorridos em cada unidade da Federação. No primeiro
caso, trata-se de uma questão de incompetência na formulação de política econômica,
no segundo, de populismo dos políticos. Nos dois, de aumento do endividamento interno,
com prejuízo para o povo.
É o prejuízo para o
povo que torna indignados os bispos da CNBB, como também me torna indignado. Mas a
indignação deve ser com quem foi responsável pelo endividamento da nação e do Estado,
com aqueles que provocaram o déficit em conta corrente (que determina o aumento da
dívida externa) e o déficit público (que é sinônimo de aumento da dívida interna).
Os responsáveis não foram os credores, fomos nós, foram nossos políticos e técnicos,
incompetentes e populistas.
Nas democracias, a
responsabilização (accountability) é um
conceito fundamental. Cada um é responsável pelos seus atos e tem obrigação de prestar
contas deles. A responsabilização é um conceito moral e político. A CNBB não
contribui para essa responsabilização, fazendo um plebiscito com as perguntas que está
fazendo, porque os pressupostos em que elas se baseiam estão equivocados. Sobra,
entretanto, o mérito de nos lembrar que o aumento do endividamento nacional e do
endividamento público são práticas em princípio inaceitáveis. Principalmente quando
se devem a aumento da taxa de juros (beneficiando rentistas) ou ao aumento do consumo, em
vez do investimento, como ocorreu no Brasil entre 1994 e 1998.
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