header_y.gif (2220 bytes)menu_lc_articles.gif (2681 bytes)



Impunidade Penal

Luiz Carlos Bresser-Pereira

O Estado de S.Paulo, 6.10.2000

Why the rich are not made responsible for their crimes.

Um dos traços que melhor definem o subdesenvolvimento político de um país é a impunidade dos membros das classes dirigentes. Crimes principalmente contra o patrimônio público são cometidos com grande freqüência, mas a probabilidade de que seu autor seja condenado e encarcerado é pequena. Um bom advogado logra a absolvição, ou então adia a condenação e a aplicação da pena até a prescrição. Estas considerações – que não têm nenhuma novidade – me foram sugeridas quando, de um lado, observei a polêmica que a proposta de novo Código Penal vem provocando, e de outro, quando me dai conta da presença na campanha eleitoral para a Prefeitura de São Paulo de Fernando Collor e Paulo Maluf.
Na sobrevivência destes dois políticos vejo a confirmação da impunidade. Seus governos foram marcados pela corrupção, muitos processos criminais foram iniciados contra eles, mas aí está um deles disputando os votos de eleitores mal-informados. Apenas uma coisa reduz minha indignação: se me perguntarem o que é mais provável, a condenação política pelos cidadãos ou a condenação pela Justiça, não tenho dúvida alguma: a condenação pela cidadania virá antes.
No debate sobre o projeto de novo Código Penal vejo um sinal de como a impunidade penal se mantém pelo desvio da atenção dos cidadãos em relação à causa jurídica principal do problema. Esta não está nesse código, que define os crimes e as penas, mas no Código de Processo Penal, que, este sim, necessita revisão urgente.
Por que esta impunidade? Há uma razão óbvia de caráter sociológico e político. O Brasil é um país marcado por profunda desigualdade econômica e social. Nosso país ostenta um dos piores índices de concentração de renda do mundo. As correspondentes diferenças de classe são gritantes, refletindo-se na nossa vida cotidiana e na nossa forma de vermos o mundo. Apesar do enorme crescimento da classe média que ocorreu nos últimos 50 anos, as marcas do escravismo e do latifúndio continuam muito presentes na divisão da sociedade entre dominantes e dominados, entre ricos e pobres.
A lei penal, a reclusão em penitenciárias públicas, é feita para os pobres, não para os ricos. É difícil para os ricos – e mesmo para os de renda média – imaginar seus iguais serem tratados como o são os criminosos das classes pobres. Ainda que os governos – principalmente em São Paulo – venham investindo na construção de penitenciárias, as condições dos presos comuns é em geral terrível. Não são prisões para “nossos iguais”. Muito depressa concluímos que merecemos, no mínimo, uma prisão especial. Mas o que, enfim, seria “mais razoável” é a absolvição. Afinal, o susto, a desmoralização pública já foram penas suficientes...
Esta explicação sociológica para a impunidade me parece correta, mas   não explica como a impunidade é garantida na prática. Ficam claras suas causas; não ficamos sabendo como ela se materializa numa sociedade na qual existe o Estado de Direito, na qual os crimes estão razoavelmente caracterizados e as penas, definidas.
Só compreendi o “mecanismo jurídico da impunidade” quando, há alguns anos, logo após a prisão de P. C. Farias, ouvi uma longa entrevista de um jurista a uma emissora de rádio de São Paulo. O jurista, cujo nome não guardei, conhecia bem a lei penal e procurava explicar as razões que tornariam difícil condenar aquele senhor. Fiel à sabedoria convencional, ele afirmou várias vezes que “a lei é boa...” Dessa forma ele atribuía o problema da impunidade às pessoas, e não às instituições. Mas, em seguida, de forma inadvertida, ele mostrava como a lei processual penal dificultava a condenação, desde que um advogado competente soubesse utilizar todas as suas oportunidades.
O jurista não concluía, mas ficou claro para mim a partir de então, onde estava o problema: no Código de Processo Penal. Esse código obedece a princípios básicos de Direito: ninguém será punido sem condenação prévia; a condenação deve basear-se em crime cuja autoria foi amplamente demonstrada; todas as oportunidades de defesa devem ser garantidas ao réu; in dúbio, pro reo. Mas é claro que existem formas e formas de fazer valer esse princípios. No nosso caso, eles se traduzem no oferecimento de um número incrível de oportunidades de recursos, em exigências formais absurdas para garantir estatuto de prova às evidências obtidas pela Promotoria, em prazos de prescrição curtos.
Não sou, entretanto, especializado na matéria. Sou bacharel em Direito, mas nunca pratiquei profissionalmente o que aprendi. Por isso fui-me certificar com juristas que conhecem o assunto. Os juizes confirmaram minha hipótese. Já entre os advogados criminais, inclusive alguns que respeito, encontrei mais resistência a esta idéia. Têm uma enorme dificuldade em admitir que a lei lhes dá instrumentos em demasia para defender seus clientes.
No caso do Direito, como, aliás, mais amplamente, na Política, onde se originam as normas jurídicas, não existem verdades absolutas. Existem consensos ou quase-consensos que se alcançam através do debate público. O Brasil tem avançado no combate à impunidade política e jurídica. Alguns políticos corruptos já foram varridos da arena política. Já existem casos importantes de condenação de ricos. A tolerância social à impunidade tem diminuído. Mas só avançaremos se colocarmos este tema na agenda do país. Precisamos saber porque a impunidade penal ainda subsiste no Brasil. Neste artigo, ofereci duas explicações – uma mais geral, de caráter sociológico, outra mais específica, já no campo do Direito – mas ambas baseadas em uma indignação moral que eu sei que não é só minha. Espero que elas ajudem a fazer avançar o debate entre os que estão indignados, porque só por meio do debate público e da indignação ética poderemos tornar melhores e mais efetivas as instituições jurídicas e, mais amplamente, lograr o desenvolvimento político do País.