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Pobre Argentina

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo, 29.11.2000

The sensible way out of the crisis is exchange rate devaluation.
NNew IMF loans will only delay it.

Nenhum país tem interesses comuns mais profundos com o Brasil do que a Argentina. Por isso, é com tristeza que vejo o calvário pelo qual está passando aquele país. Nós estamos há vinte anos semi-estagnados; a Argentina, há quase um século.
As crises combinadas da dívida externa e da alta inflação atingiram os dois países quase ao mesmo tempo, no início dos anos 80, mas no país vizinho os problemas assumiram maior gravidade e a crise se torna mais aguda a cada dia.
Nós, embora não tenhamos ainda logrado uma efetiva estabilização macroeconômica, demos um passo decisivo nessa direção quando, em 99, desvalorizamos o câmbio. Enquanto isso, a Argentina vê sua própria crise se aprofundar porque convencionou-se que a desvalorização está fora de cogitação. Mais do que isso, é "impensável", como me disse um notável economista argentino.
Ora, o que é impensável, ou inaceitável, é o que está acontecendo com o povo argentino. É ver a economia do país paralisada, é ver os salários caindo e a renda se concentrando, é ver os direitos básicos do povo serem implacavelmente eliminados, como está acontecendo agora, com a pressão do Fundo Monetário Internacional para que o país privatize seu sistema básico de previdência.
O Brasil superou a inflação - e a Argentina, a hiperinflação - por meio de uma âncoras cambiais. Nos dois países a conseqüência foi a sobrevalorização do câmbio. No Brasil, entretanto, o mecanismo fundamental de estabilização dos preços foi a neutralização da inércia inflacionária com o uso da URV, de forma que o câmbio teve peso menor.
Já na Argentina a hiperinflação exigiu uma âncora cambial forte demais - a adoção de um "currency board"-, que retirou da nação o instrumento monetário e o cambial. Uma instituição monetária que pode servir para um pequeno país, um entreposto comercial moderno, como Hong Kong, vem sendo irracionalmente mantida em um grande país como a Argentina, em nome do medo do retorno da hiperinflação.
Dessa forma, só resta ao país, no plano macroeconômico, a política fiscal.
Ora, desde quando a política fiscal é eficiente para resolver um problema que não é essencialmente fiscal, mas cambial? Quando há um desequilíbrio na conta corrente do país em razão de um excesso de absorção, ou seja, de uma economia superaquecida devido a elevados déficits públicos, sem dúvida a solução é o ajuste fiscal. Mas, quando a causa do desequilíbrio é um câmbio sobrevalorizado, o uso da política de ajuste fiscal é inaceitável.
E torna-se ainda mais grave quando é acompanhado de "reformas" que não são outra coisa senão um sobreajuste fiscal, como é o caso da privatização de monopólios naturais, ou formas de reduzir salários e eliminar direitos, como ocorre com a proposta de eliminar a previdência básica.
A irracionalidade envolvida no uso do ajuste fiscal, ao invés da desvalorização direta, para resolver um problema cambial é simples de explicar. Desvalorizar o câmbio significa mudar os preços relativos dos produtos não-comercializáveis internacionalmente (o principal dos quais é o salário) em relação aos comercializáveis internacionalmente, tornando, assim, as exportações mais atrativas e dificultando as importações.
Com a desvalorização direta, a mudança de preços relativos é alcançada automaticamente, desde que a inflação decorrente seja pequena. Com o ajuste fiscal poder-se-á alcançar o mesmo resultado, mas ao custo de uma depressão econômica e de altíssimas taxas de desemprego e de falências.
No Brasil, entre 1995 e 1998, autoridades locais, com apoio das agências internacionais, tentaram essa alternativa. Quando ela se revelou inviável e a situação das reservas tornou-se insustentável, Fernando Henrique se antecipou e tomou a decisão correta.
Na Argentina, porém, a irresponsabilidade das autoridades econômicas já dura quase dez anos e só agrava a situação do país. O Plano de Conversibilidade, embora correto no momento em que foi feito, já começou com um peso desvalorizado. Os grandes investimentos estrangeiros e os retornos de capitais argentinos, entretanto, deram-lhe fôlego, promovendo prosperidade artificial no país entre 1992 e 1994.
Quando a crise estava para voltar, a valorização do real deu novo alento ao "currency board". Mas, desde 1999, as desvalorizações do real e do euro não deixam à Argentina outra alternativa sensata senão deixar o câmbio flutuar.
Mas pode a Argentina desvalorizar o peso? Sim, porque essa é a menos arriscada das políticas que tem pela frente.
O fato de serem 80% dos depósitos bancários privados na Argentina denominados em dólar só torna mais fácil a desvalorização. E não há nenhuma razão para que os preços internos sejam corrigidos pela taxa de desvalorização, já que a inércia inflacionária foi há muito debelada, de forma que os salários não serão indexados ao dólar. Além disso, os únicos preços que serão elevados em pesos serão os dos bens comercializáveis, e de forma moderada.
Por que, então, não se desvaloriza? A razão legal é menor. O fato de atingir o patrimônio dos ricos e reduzir os salários, especialmente os mais altos (nos quais existe um componente de consumo externo elevado), é a causa básica que nunca se explicita. A isto se soma o medo da mudança, facilmente confundido com a prudência das autoridades econômicas e do próprio povo.
A política do FMI de exigir mais ajuste fiscal para uma economia que nos últimos anos tem apresentado consistentes superávits fiscais primários é um grave equívoco. Não salva a Argentina, que continuará na sua crise; salva apenas seus credores.
A Argentina precisa da ajuda do FMI, mas para colocar os seus fundamentos macroeconômicos em ordem, não para promover ainda maior miséria.