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Mário
Covas: um Republicano
Luiz Carlos
Bresser-Pereira
Folha de
S.Paulo, 7.3.2001
Mais um grande político nos
deixa. Em 1999, foi Montoro; agora é Mário Covas. Montoro foi meu mestre na política;
Mário Covas, meu companheiro um pouco mais velho. Ambos foram deputados, senadores e
governadores de São Paulo. Montoro foi o principal líder da campanha das Diretas Já e
deveria ter sido o primeiro presidente do Brasil redemocratizado; Covas só não foi
eleito presidente em 1989 porque as esquerdas dividiram-se em 1980. Mas, mesmo sem terem
sido presidentes, o que fizeram pelo Brasil os deixará definitivamente na história do
país.
Conheci Mário Covas quando ele ainda estava com
os direitos cassados pelos militares, mas preparava-se para voltar à política. Era um
engenheiro e, naquele momento, trabalhava na profissão. Mas não tinha dúvidas: sempre
apoiado por Lila, sua vocação era a política.
Mas que tipo de política? Covas foi um desses
políticos que nos fazem compreender por que os gregos entendiam a política como a mais
nobre das profissões: a que cuida do bem público, dos interesses maiores da sociedade.
Nunca tive outra visão da política, mas, em Covas e em Montoro, pude confirmá-la.
Poucos conseguem conferir essa nobreza ao trabalho
político. Geralmente os políticos são vistos como espertos ou corruptos. Segundo essa
visão pessimista, eles não buscariam outra coisa a não ser a reeleição ou o
enriquecimento. Fariam permutas entre esses objetivos, os melhores deles priorizando a
reeleição. Ora, essa teoria é falsa. Existem também os políticos cujas permutas se
fazem entre reeleição e/ou defesa do interesse público. Para esses, a corrupção,
ficar rico com a política, é impensável.
Mário Covas era de uma integridade absoluta.
Buscava ser eleito e manter-se popular, mas, quando esses objetivos eram contraditórios
com o interesse público, não tinha dúvidas quanto a qual escolher. Como verdadeiro
estadista, ele tinha a visão do futuro, a coragem de arriscar a reeleição para ser fiel
às suas convicções e a prudência de pensar duas vezes das decisões. Jamais foi um
radical, não apenas por ser prudente: também por ser modesto e firme.
Não se deixou dominar por uma das duas emoções
que mais prejudicam os políticos: arrogância e medo. Combatia a arrogância com a
modéstia; o medo, com a coragem de colocar o interesse público como critério principal
de ação.
Mário sabia que a política é a arte do
compromisso; sabia que, sem acordo e concessões mútuas, é impossível alcançar as
maiorias eleitorais ou parlamentares para governar. Mas sabia também, com clareza, qual
era o limite do compromisso, até que ponto podia ir sem colocar em risco as suas
convicções.
Mário Covas foi sempre um político de esquerda.
Por isso foi cassado. Mas adotou uma política de centro-esquerda, social-democrata. Sabia
que o desafio maior era governar o capitalismo com mais competência e mais justiça do
que os próprios capitalistas. Procurou fazer isso sempre que chegou ao poder.
Ele foi um grande prefeito de São Paulo, nos anos
80, e governou o Estado por pouco mais de seis anos com uma competência insuperável.
Recebeu um Estado quebrado e desmoralizado. Deixou um Estado saneado e atuante, com
contribuições decisivas à educação, à saúde, à cultura, à administração
eletrônica e aos transportes.
Esses resultados foram logrados porque ele não
era só um líder político com idéias e valores. Era também um gerente, que
administrava o Estado e suas finanças com a competência de quem sabia todos os números,
conhecia todos os responsáveis diretos e indiretos pelos resultados a serem alcançados e
cobrava a realização dos resultados com a mesma firmeza com que incentivava os
responsáveis.
Como todo grande político, era um grande orador.
Mas não falava por falar, pelo brilho da oratória. Tinha sempre uma mensagem clara e
precisa, na qual as suas metas e os valores básicos que o orientavam estavam bem
definidos. É um papel fundamental dos grandes políticos sintetizar os valores da
sociedade e estabelecer as metas a alcançar.
Uma das áreas em que Mário foi mais bem-sucedido
em seu governo, além da área financeira, foi a cultural. Sua obra aí, principalmente a
construção da Sala São Paulo, na antiga estação Júlio Prestes, e a constituição de
uma orquestra sinfônica de padrão internacional, foi impressionante. A reforma da
Pinacoteca do Estado foi outra bela herança.
Mário Covas foi um social-democrata que se
indignava com a injustiça e um liberal pronto para defender a liberdade. Mas foi, mais do
que qualquer outra coisa, um republicano, um político dotado de virtudes republicanas.
Num mundo que, de um lado, fica cada vez mais individualista e egoísta, mas, de outro,
valoriza cada vez mais a cidadania participativa e responsável, para Mário, como para
Montoro, cidadania não significava só um conjunto de direitos, mas, principalmente, de
obrigações republicanas.
Os dois estavam nos dizendo, com isso, que a
liberdade, a justiça e o desenvolvimento não se alcançam apenas deixando as
instituições e os mercados atuarem. São necessárias, adicionalmente, a participação
ativa de cada cidadão e a responsabilidade e a visão de seus líderes políticos. As
instituições só existem, afinal, porque foram criadas por homens e mulheres com
espírito público. E só funcionam se forem por eles legitimadas e implementadas.

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