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O Impasse da Energia

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Folha de S.Paulo, 7.6.2001

Given the high costs of thermoelectrics, only a system of cross-subsidies backed by state-owned energy producers will avoid excessive increase in prices and unacceptable private rents.

A Folha informou em sua principal manchete de segunda-feira que técnicos em energia estimam em 60% acima da inflação o aumento de preços necessário se mantido o modelo de privatização e liberalização do setor. Essa estimativa é tão realista quanto inaceitável. O aumento é excessivo e inaceitável porque implica lucros escandalosos para os proprietários de hidrelétricas privatizadas. Enquanto o governo administra a crise causada por sua própria imprevidência, é preciso suspender as privatizações e iniciar um amplo debate sobre um novo modelo de produção e de gestão de energia.
A crise tem causas diversas, inclusive a falta de chuvas neste ano, mas não há dúvidas de que a política de privatizar a produção de energia elétrica no país é a responsável mais geral pelo problema.
O programa de desestatização foi a causa principal da crise. Isso porque levou os governos federais e estaduais, eles próprios vítimas da crise fiscal, a acreditar que a responsabilidade por novos investimentos caberia crescentemente ao setor privado. Como os investimentos privados não aconteceram, ocorreu uma forte redução dos investimentos na área. A produção passou a aumentar a um ritmo menor do que a demanda. Por que o setor privado não investiu em termelétricas? Essencialmente porque há um impasse: o custo da produção de energia com o uso de gás natural é cerca de duas vezes maior do que o custo de produção e transmissão das hidrelétricas existentes. Logo, o setor privado necessita de uma enorme elevação de preços de energia para investir.
Além de ser um fator inflacionário, essa elevação atingiria gravemente os consumidores residenciais e industriais, baixaria a nossa competitividade internacional e seria irracional e injusto do ponto de vista distributivo: as hidrelétricas privatizadas se beneficiariam de uma "renda econômica pura" (a renda que David Ricardo usou em seu modelo clássico), com lucros extraordinários.
Esse impasse foi recentemente contornado pela decisão do governo em fazer a Petrobrás assumir o risco da variação cambial do custo do gás e a Eletrobrás garantir a compra da energia gerada na área. Mas a solução é apenas provisória, como provisória é toda a administração da crise em curso. O nó do problema energético brasileiro está no impasse da ameaça de um grande aumento real dos preços, o que não vem sendo discutido como deveria.
Diante do problema, mas antes de a crise tornar-se clara, alguns economistas propuseram que os preços da energia elétrica fossem liberados. A criação de um mercado livre e competitivo para o atacado continua em pauta. Pura ideologia, imitação grosseira da experiência estrangeira, má economia. O mercado é um mecanismo maravilhoso para alocar fatores de produção, mas não nas circunstâncias especiais do setor de produção de energia brasileiro.
Se os preços fossem liberados, a tendência seria de que os preços se equilibrassem em torno do custo marginal, que é o custo das termelétricas, ocorrendo, em consequência, a elevação violenta dos preços e os lucros abusivos para as hidrelétricas privatizadas.
A solução para o problema é avançar no mecanismo já existente de subsídios cruzados, permitindo que o sistema de energia autofinancie os preços mais elevados das termelétricas: os preços aumentariam à medida em que a porcentagem de energia gerada a custos mais caros pelas termelétricas fosse se elevando em relação ao total gerado. Segundo esse mecanismo, as hidrelétricas transfeririam o lucro adicional decorrente do aumento real de preços para um fundo que subsidiaria o preço abaixo do custo cobrado pelas termelétricas.
Torna-se, entretanto, difícil executar um plano dessa natureza com as grandes usinas hidrelétricas privatizadas. O controle estatal torna a operação muito mais simples e direta. Parece-me importante suspender os planos de privatização em curso no setor. Ainda há tempo: o Estado continua a controlar 78% da geração de energia. É difícil justificar a privatização de monopólios naturais (e as usinas hidrelétricas estão muito próximas dessa situação), mas é impossível legitimar privatizações quando a economia do país está dobrando o custo marginal e abrindo espaço para rendas ricardianas enormes.
Além de suspender as privatizações e viabilizar os investimentos privados em termelétricas, é essencial que o ritmo dos investimentos em hidrelétricas aumente substancialmente. Investimento privado e público. O país não pode continuar a aceitar o conceito ideológico de déficit público adotado pelo FMI. Segundo esse conceito, que já foi repudiado por diversos países, o aumento de endividamento de empresas estatais lucrativas para financiar investimento é considerado déficit público.
O Brasil não precisa aceitar imposições ideológicas desse tipo. Nos últimos dez anos, sob a égide de uma crise fiscal, realizamos um grande e basicamente bem-sucedido programa de privatização. Mas porque consultavamos os interesses do país.
Agora que a crise fiscal está sob controle e que temos dois problemas graves e interligados a resolver na energia - produção e preços -, está na hora de tomarmos as demais providências regulatórias necessárias para viabilizar os investimentos públicos e privados na área, sem, no entanto, permitirmos aumentos violentos de preços.
Diante do alerta do governo e das primeiras medidas tomadas, a população já está engajada em economizar energia. Responde à multa para quem ultrapassar a quota de 80% do consumo médio anterior e à possibilidade de corte de energia, mas revela também sua responsabilidade social. A crise trará perda de PIB, conforme calculou o economista Fernando Garcia, da FGV, mas não creio que nos levará necessariamente à recessão. Os prejuízos serão maiores ou menores dependendo da racionalidade com que todos nós - e não apenas o governo- administrarmos o problema.