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Um Liberal Conservador

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Valor Econômico, 11.10.2001

Roberto Campos was an eminent intelectual who highly contributed to the construction of the liberal conservative thinking in Brazil.

O Brasil, ao ver desaparecer Roberto Campos, perde o mais notável dos seus pensadores liberal-conservadores, e um homem público ao qual o país deve algumas contribuições notáveis. Sempre nos mantivemos em campos políticos e ideológicos distintos. Mas sempre tivemos em comum o respeito pelas idéias e a crença no mercado como um extraordinário mecanismo de alocação de recursos e propiciador de riqueza. Ambos partimos de uma perspectiva intervencionista e nos tornamos liberais, ele antes de mim, de forma mais radical; ele identificando as idéias liberais com as conservadoras, eu tentando mostrar que é possível ser liberal no campo econômico e político, e progressista no campo social, desde que não se seja ultra-liberal.
Nossas divergências, num primeiro momento, nos anos 60 e 70, foram profundas. Lembro-me bem de como reagiu às criticas que fiz à sua política econômica recessiva e redutora de salários de combate à inflação. Leu meu livro "Desenvolvimento e Crise no Brasil", de 1968, cuidadosamente, sublinhou as passagens que mais discordava, e, depois de uma série de incidentes, convidou-me para almoçar e debater o livro, com a presença do diretor da FGV de São Paulo. Não chegamos a um acordo naquele dia, mas a partir daquele momento creio que passamos a ter um respeito maior um pelo outro. E eu, com o correr dos anos, concluí que minhas críticas haviam sido talvez em parte injustas. O ajuste fiscal que ele e Octávio Bulhões lograram e algumas das reformas estruturais que então realizou, como a reforma tributária, a reforma administrativa do Decreto-lei 200, e a nacionalização das empresas telefônicas, permitiram que estabilizássemos os preços, ajustássemos o câmbio, e recuperássemos nossa capacidade de poupança, estabelecendo-se as bases para o grande desenvolvimento econômico que se seguiu, entre 68 e 74.
Roberto Campos, como Celso Furtado, fez parte do grupo de jovens economistas que, na primeira metade dos anos 50, sob a liderança de Getúlio Vargas, pensou nas estratégias que o Brasil deveria seguir para, com apoio do estado, industrializar-se e alcançar o desenvolvimento. Vargas era um populista no plano político - foi o primeiro político brasileiro a estabelecer uma relação direta com o povo - mas mantinha a economia sob controle: não tinha nada de populista no plano econômico. Com a sua morte, porém, o país entra em um ciclo de desequilíbrio fiscal desenvolvimentista, primeiro com Juscelino Kubitscheck, depois com João Goulart, que provavelmente foram decisivos para levar Campos a abandonar suas idéias e abraçar o liberalismo de forma crescente. Ao mesmo tempo, repudiava a idéia de um desenvolvimento nacional, e passa a ser o principal defensor no país de uma aliança plena com os Estados Unidos.
A adesão imediata ao regime militar, do qual se tornará seu primeiro Ministro do Planejamento, trouxe para Campos uma série de contradições, principalmente porque os militares não tinham nada de liberais no plano político, e, no plano econômico, eram menos liberais do que ele. Isto ficou nítido quando, já a partir do governo Costa e Silva, deixa o governo para não mais voltar, a não ser como parlamentar. A abertura comercial gradual que ele deixara esboçada no governo Castelo Branco, percebendo que a industrialização por substituição de importações esgotara-se, foi abandonada, e um novo ciclo substitutivo é iniciado.
Mas durante o regime militar, Campos e Golbery Couto e Silva, serão seus dois principais ideólogos. Serão, conforme disse em um trabalho sobre as interpretações do Brasil, dois líderes da interpretação autoritário-modernizante.
É só com a redemocratização, quando se transforma em oposição ao governo Sarney, que Roberto Campos resolverá de maneira plena suas contradições. A partir de então será, no Brasil, o principal ideólogo neoliberal, ou, mais precisamente, ultra-liberal, a debater idéias e princípios conservadores.
Como economista, há muito abandonara a idéia de escrever "papers" acadêmicos, e colocava toda a sua extraordinária criatividade em defender suas idéias em longos e brilhantes artigos semanais na grande imprensa.
Não creio, porém, que Campos tenha feito bem em superar suas contradições. Estou convencido que o melhor caminho não é o do meio, pois encontrá-lo envolve um permanente processo de resolver contradições para criar novas. Ao deixar de ter esta necessidade, que é a de quem lida com problemas práticos, concretos, Campos passou a defender políticas radicais de privatização e de desregulamentação, que eram tão dogmáticas quanto as idéias opostas defendidas por velhos nacionalistas desenvolvimentistas.
Mas, enquanto quase não tinha seguidores para suas pregações dos anos 70, a partir do final dos anos 80 Campos encontrará um número crescente de fiéis discípulos, que a partir do governo Collor tentarão implantar o ultra-liberalismo no Brasil. Sabemos hoje que, se o desenvolvimentismo populista foi um mal para o país, o ultra-liberalismo, apoiado em uma política de "confidence building" às custas do interesse nacional, foi equívoco de igual tamanho. Durante os anos 90 a economia brasileira logrou a estabilidade de preços graças à aplicação inovadora de um mecanismo de neutralização da inércia inflacionária, mas não logrou retomar o desenvolvimento. Manteve-se quase-estagnada e gravemente desequilibrada no plano externo, devido aos seguidos erros de política econômica cometidos sob a égide das idéias ultra-liberais dominantes até meados da década nos países desenvolvidos, e da crença equivocada que a única alternativa que existia para o Brasil era desenvolver-se com a poupança alheia.
Roberto Campos era um homem superior, que não deve ser responsabilizado por esses erros, principalmente pelo segundo. Nestes últimos anos, tive, em várias ocasiões, oportunidade de conversar com ele. Conversas que foram sempre um prazer, dada a inteligência e o senso crítico do interlocutor. Nestas conversas eu via um homem que olhava o mundo e o seu país com um certo desalento, mas que nem por isso desanimava. Estava certo de que suas idéias ajudariam a desenvolver o país, e queria debatê-las, mas seus adversários preferiam pensar-se seus inimigos, e o atacar pessoalmente, ao que ele respondia com o desprezo.
Roberto Campos nos deixa em um momento em que, mais do que nunca, é necessário repensar o país. Nem o ultra-liberalismo, nem o desenvolvimentismo, nem o "confidence building", nem o velho nacionalismo apresentam respostas para nossos problemas. O debate público é necessário e precisa ocorrer, porque só através dele será possível melhorar a qualidade das decisões de política econômica e social. Mas para isto é preciso afastar os radicalismos de um lado e de outro, e partir de dois pressupostos fundamentais - o regime democrático e o critério do interesse nacional -, e de uma condição essencial: a de que se discutam questões e não pessoas.
Roberto Campos não conseguiu participar de um debate desse tipo, provavelmente porque o Brasil não estava ainda preparado para ele, e porque ele próprio, que acreditava tanto nas idéias, era pessimista quanto à possibilidade dos bons argumentos para se chegar a soluções inovadoras e a acordos parciais. Deixou, entretanto, um pensamento tão rico sobre o Brasil quanto polêmico. Vamos transformar as questões que abordou em verdadeiro debate público, sem dogmatismos. Vamos discutir os grandes problemas nacionais, que são muito mais complexos do que os estereótipos liberais e intervencionistas, conservadores e progressistas pressupõem. Vamos discuti-las com imaginação e respeito mútuo. Só assim encontraremos o caminho difícil mas possível do desenvolvimento econômico e da redução da injustiça social, que era o objetivo de Campos, e só pode ser o de todos nós, participantes do debate público necessário.