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A Fragilidade que Nasce da Dependência Externa

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Valor 1000, setembro de 2001

The Brazilian economy needs to count on its own resources
to recover growth.

Por que o Brasil não retoma o desenvolvimento? Será principalmente porque precisamos aprofundar nosso ajustamento fiscal, como sugere o último acordo com o FMI? Ou porque nos falta uma política industrial ou uma política de desenvolvimento, como afirmam muitos críticos do governo? Ou porque os déficits em conta corrente apontam para um nível insustentável de endividamento externo?
Nesta nota procurarei explicar porque a terceira alternativa é a correta. O inimigo principal, hoje, não é mais a inflação, nem o desajuste fiscal, mas o desequilíbrio externo. O Brasil alcançou a estabilidade de preços mas não o equilíbrio macroeconômico. Seu alto endividamento externo e os enormes déficits em conta corrente mantêm o risco-Brasil em nível elevado. Em conseqüência, praticamos taxas de juros reais incompatíveis com qualquer esperança de desenvolvimento.Pensar em resolver esse problema recorrendo à poupança externa é apenas agravá-lo. Ou a economia brasileira conta com seus próprios recursos, rompendo com a dependência da poupança externa, ou então se condena à semi-estagnação atual.
A vulnerabilidade externa é responsável pelo fato de que as taxas de crescimento da economia brasileira não sejam determinadas por seu PIB potencial, ou seja, pela possibilidade de desenvolvimento derivada de sua capacidade de investimento e de incorporação de progresso técnico, mas sejam mantidas abaixo deste ponto devido à prática de altas taxas de juros, que visam impedir no curto prazo que o desequilíbrio da conta corrente aumente ainda mais.
Os economistas da oposição, ao falarem em uma política voltada para o mercado interno, estão ignorando o problema, e assim não poderão resolvê-lo. Também não o resolverão reconhecendo-o e falando em “renegociar” a dívida. A dívida externa não precisa ser renegociada porque está sendo normalmente rolada pelos credores. Em um passado não muito distante, renegociar significava para a oposição alguma forma de moratória, mas seus líderes e candidatos mais responsáveis já deixaram claro que abandonaram essa alternativa: perceberam que seria desastrosa para o país.
Os economistas no governo, por sua vez, imaginam que seguindo a orientação de Washington e Nova York, e colocando toda a ênfase no déficit público, estariam resolvendo também o problema externo. Esta cambalhota teórica está apoiada no pressuposto ortodoxo convencional segundo o qual o setor privado está, em princípio, em equilíbrio, e que basta equilibrar as contas do governo para se alcançar o equilíbrio pleno. Digo “ortodoxo convencional” para distingui-lo da boa teoria econômica, encontrável nos livros-texto, que separa as contas do estado (déficit público, dívida pública) das contas da nação (déficit em conta corrente, dívida externa), e ensina que, quando o déficit em conta corrente decorre de excesso de demanda, a política fiscal restritiva é de fato indicada, mas quando não há excesso de demanda, como é o caso hoje do Brasil, a política cambial, acompanhada por uma política comercial competente, é a solução. A ortodoxia convencional do FMI, que coloca toda ênfase no ajuste fiscal, e deixa em segundo plano o câmbio, paradoxalmente violenta os fundamentos macroeconômicos em que pretende se apoiar.
O fato de o país estar excessivamente endividado é claro. Os dois índices relevantes – a dívida em relação ao PIB, e, principalmente, a dívida em relação às exportações – estão muito acima do aceitável. Nos anos 70 Mário Henrique Simonsen alertava com insistência que o máximo que um país poderia suportar sem risco grave era uma relação dívida externa/exportação de 2. Hoje essa relação já está em 4. Por outro lado, déficits em conta corrente elevados (neste ano estimado em US$ 27 bilhões) apenas aumentam ambas as relações e criam expectativas negativas para os agentes econômicos: mostram que estamos em uma rota insustentável a médio prazo. Não é outra a razão que nos levou a fazer um novo acordo com o FMI.
O pressuposto da fragilidade externa como problema central da economia brasileira está, porém, longe de ser consensual. Pelo contrário, lendo os jornais, ouvindo as análises dos economistas e jornalistas econômicos, considerando os termos do nosso acordo com o Fundo, conclui-se que não seria a dependência externa excessiva, mas o déficit público, que é visto como principal obstáculo à estabilidade macroeconômica. O que não deixa de ser estranho, quando já temos um superávit público primário superior a 3 por cento do PIB, de forma que o debate público operacional, nos últimos 12 meses, embora positivo, já está reduzido para 2,6 por cento do PIB.
Com isto não estou afirmando que o problema fiscal não seja importante. O déficit público reduziu-se, mas o endividamento público tornou-se excessivo nos últimos anos, e continua a aumentar. Por isso, embora não consiga entender os recentes aumentos da taxa de juros, estou plenamente de acordo com o aumento do objetivo de superávit primário de 3 para 3, 35% previsto no acordo com o Fundo. Entretanto, se continua a existir um problema fiscal, ele deixou de ser o problema número um da economia brasileira, e, portanto, não será a partir da a estratégia de concentrar os esforços apenas nele que se poderá alcançar a verdadeira estabilização macroeconômica e retomar o desenvolvimento.
Se é a fragilidade externa obstáculo maior com que nos defrontamos, por que não o resolvemos? A primeira e pronta resposta será provavelmente a seguinte: porque não temos uma política de exportação e de substituição de importações (isenta de protecionismo) clara e definida, porque o país inteiro não está, como deveria estar, mobilizado para exportar ou substituir importação de bens nos quais conta com vantagem competitiva. No Brasil, ao contrário do que acontece com os países ricos, cuja situação é infinitamente mais confortável, esse problema é apenas do Ministro do Desenvolvimento e do Secretário Executivo da CAMEX, ao invés de ser de todo o governo e de toda nação.
Sem dúvida, aí está a razão principal do porquê não resolvemos o desequilíbrio externo. Mas, qual a causa da causa? Por que essa falta de prioridade para a para a exportação? Por que esse desalento em relação à possibilidade de retornar a grandes superávits comerciais? Por incompetência, por falta de vontade, porque uma política dessa natureza não é popular internamente, nem é bem vista pelos mercados financeiros internacionais?
Pode ser por tudo isso somado. Mas é também porque nós, brasileiros, não nos dissemos claramente (nem estamos disto plenamente convencidos) de que não poderemos e não deveremos mais contar com poupança externa para nosso desenvolvimento. Devemos continuar muito interessados em investimentos diretos estrangeiros, mas as divisas dele derivadas devem ser usadas para pagar gradualmente a dívida financeira, não para cobrir nossa despoupança internacional. Nosso investimento deverá ser financiado por nossa própria poupança. “O capital se faz em casa”, dizia Barbosa Lima Sobrinho, referindo-se ao Japão. Na verdade, conforme demonstrou o clássico estudo de Feldstein e Horioka, quase 100 por cento do investimento nos países da OCDE é financiado pela poupança interna dos respectivos países.
Entre as elites brasileiras, entretanto, é arraigada a crença de que “o Brasil só poderá se desenvolver com a ajuda da poupança externa”. Esta crença, que se tornou dominante em meados dos anos 90, é um contra-senso econômico. Desenvolver com base em contínuo endividamento financeiro, que aumenta as relações dívida/PIB e dívida/exportação, como temos feito, é um convite à crise financeira, jamais uma estratégia de desenvolvimento. Como qualquer texto elementar de finanças ensina, o recurso ao endividamento financeiro, público ou privado, interno ou externo, é legítimo se for feito por período limitado, para aumentar a capacidade produtiva: deixa de sê-lo se se pretender aumentar permanentemente a dívida.
A crença, portanto, que um país em desenvolvimento pode ou deve recorrer permanentemente à poupança externa é falsa. Este é o ponto central do meu argumento: É preciso tornar o aumento das exportações o objetivo econômico nacional maior, e para isto temos que nos convencer que o recurso à poupança externa é indesejável. O investimento direto é desejável, mas deve ser usado para substituir endividamento financeiro externo por “endividamento patrimonial”, ou seja, ativos estrangeiros líquidos (deduzidos nossos pequenos investimentos no exterior) aplicados em capital produtivo no país. Enquanto ficarmos contando com poupança externa e vendo como ‘naturais’ elevados déficits em conta corrente, não concentraremos nossos esforços na exportação e não retomaremos o desenvolvimento.
No quadro das contas nacionais, poupança externa é déficit em conta corrente. Para eliminá-lo ou reduzi-lo substancialmente, a meta deve ser a de alcançar grandes superávits comerciais (ou, mais precisamente, grandes superávits na balança de “transações reais”, que inclui os serviços não-financeiros). A estratégia de aumento radical das exportações deve basear-se em uma política comercial agressiva, e uma política de câmbio e juros que eleve (desvalorize) a taxa de câmbio real até o nível necessário, mantida a inflação sob controle.
Há um elemento perverso nas relações econômicas internacionais, que tende a valorizar a taxa de câmbio ao invés de mantê-la relativamente desvalorizada, como é necessário para um país altamente endividado, quando esse país continua a recorrer à poupança externa. A taxa de câmbio de equilíbrio de um país é dada pelo total de fluxos de divisas ofertados e demandados. Dadas reservas estáveis, a demanda de divisas é dada pela necessidade de importações de bens e serviços, pelo valor dos juros e dividendos a serem pagos no exterior (que somados constituem a despesa do país), e pela necessidade de rolagem da dívida velha. Os recursos ofertados ao país compõem-se do valor das exportações de bens e serviços (que constitui sua receita), mais os financiamentos e investimentos diretos. O déficit em conta corrente é a diferença entre a receita e a despesa. Nestes termos, quando incorremos em déficit em conta corrente e o financiamos com investimentos diretos e financiamento, ficamos com uma taxa de câmbio mais valorizada do que se o déficit em conta corrente fosse menor ou zerado, e os investimentos diretos fossem usados para pagar parte do principal da dívida. Em outras palavras, quanto maior o déficit em conta corrente, e, em decorrência, quanto mais recurso entram no país e mais nos endividamos financeira e ou patrimonialmente, mais valorizada fica a taxa de câmbio. Nesse sentido, a desvalorização do real no primeiro semestre deste ano deveu-se, em grande parte, à perspectiva dos agentes econômicos de redução dos investimentos diretos.
Deriva dessa lógica da taxa de câmbio um círculo virtuosos e um vicioso. Quanto mais exportarmos e pagarmos nossas dívidas, mais desvalorizado estará o real, e melhores condições teremos de manter o equilíbrio a longo prazo nossas contas externas. Quanto mais continuarmos a nos endividar externamente, tanto mais se valorizará o real, e mais grave se tornará o desequilíbrio externo. No momento estamos metidos no círculo vicioso: nosso desafio é passar para o virtuoso.
A desvalorização do real ocorrida no primeiro semestre deste ano foi positiva (ao invés de negativa, como o saber convencional afirma) e ajuda a fazer essa passagem, mas ela está longe de estar assegurada, porque os interesses e preconceitos contra uma taxa de câmbio relativamente desvalorizada, que só se valorize quando o aumento de produtividade for maior do que o da média do resto do mundo, são muito grandes. O aumento das exportações depois da desvalorização provou-se mais lento do que o esperado, provavelmente devido à insegurança das empresas de apostar em um câmbio desvalorizado no longo prazo, já que não há uma política econômica clara nesse sentido. No longo prazo, a taxa de câmbio ajustar-se-á ao grau de desenvolvimento tecnológico do país, mas no curto prazo o déficit em conta corrente e seu financiamento impõem um patamar de equilíbrio perverso que só poderá ser superado quando definirmos clareza qual nosso principal problema e como resolvê-lo.
A oposição a um câmbio relativamente desvalorizado vem tanto do lado ultraliberal quanto do populista. O populismo desenvolvimentista não aceita como meta a redução da dívida externa através da redução dos déficits em conta corrente porque não quer pagar o preço envolvido nessa transição. O custo principal está na redução dos salários que está implícita em uma taxa de câmbio mantida relativamente desvalorizada. Esse custo é pesado, decididamente não é popular, e é preciso muita coragem para que um governo decida arcar com ele. Para “resolver” o problema externo os populistas de esquerda e de direita recorrem à idéia da moratória ou do calote externo. E há um outro custo – mais conhecido – o do ajuste fiscal: embora a eliminação do déficit público e a redução da dívida pública não resolvam, ajudam a reduzir a dívida externa. O ajuste fiscal, entretanto, causa horror aos populistas econômicos, que se reconhecem exatamente por suas práticas irresponsáveis nessa área.
O ultraliberalismo dominante nas agências internacionais de Washington, por sua vez, admite a existência do desequilíbrio externo, mas nega que seja o principal problema. Insiste, ideologicamente, que o Estado e não o setor privado é o responsável pelos problemas. E quer resolver o desequilíbrio externo apenas através do ajuste fiscal. Além disso, afirma – neste caso com uma certa razão – que “dar câmbio” é permitir que o governo afrouxe seu combate ao déficit público e que as empresas se esforcem menos para aumentar sua produtividade. Daí, entretanto, não se pode concluir pela ignorância das leis do mercado, e a manutenção de um câmbio valorizado.
Grande parte do sistema financeiro internacional, por sua vez, secunda essa posição. Espera, assim, subtrair do foco os empréstimos irresponsáveis que faz a países altamente endividados em troca de altas taxas de juros. Sabe e formalmente critica a prática do “moral hazard” – ou seja, a prática de realizar empréstimos sem base econômica, contando que o país endividado acabe sendo socorrido – mas não desiste dela.
O discurso geral dos dois atores dominantes é o mesmo: comportem-se bem no plano fiscal, que nós financiaremos seu desenvolvimento... Financiam, sem dúvida, mas o que é financiado não é o desenvolvimento, e sim o consumo artificial e a quase-estagnação dos países altamente endividados.
Há um terceiro grupo, os neopopulistas. Também eles recusam-se a ver no desequilíbrio externo o principal obstáculo ao desenvolvimento. Seu discurso não chega a ser ultra-liberal: é neoliberal e pouco sensível ao interesse nacional. No plano fiscal, não cometem loucuras, embora mantenham o ciclo eleitoral que envolve aumentar as despesas públicas nos anos eleitorais, e conservam as taxas de juros “confortavelmente” elevadas – o que implica em aumento do endividamento público e privado. No plano cambial, porém, mantêm a taxa de câmbio valorizada de forma a não reduzir o valor dos salários reais, e assim garantir apoio popular. Nas relações com o exterior, adotam a política do confidence building, ou seja, de fazer tudo o que Washington e New York sugerem, para assim ter mais crédito – ou seja, poder continuar a se endividar.
Diante destas três correntes poderosas, será possível que o Brasil ainda venha a mudar de posição, e passe a colocar como seu principal objetivo de política econômica a recusa a recorrer à poupança externa financeira, e a substituição gradual da dívida financeira pela dívida patrimonial? Não será fácil, mas eu acredito que sim. Afinal, somos capazes de aprender com nossos erros. Aprendemos a rejeitar o populismo econômico em função do desastre que ele significou para o país nos anos 80. Talvez tenhamos aprendido a rejeitar o ultraliberalismo e neopopulismo diante do desastre semelhante que as políticas por eles propostas representaram nos anos 90. Em 1999 o presidente da república foi capaz de antecipar-se à crise e decidir desvalorizar o real. O populismo econômico implicou em alta inflação, o neopopulismo e o neoliberalismo, em alto endividamento externo e interno. Mas estas três forças não são insuperáveis, se formos capazes de criticá-las.
Seremos tanto mais capazes de aprender com nossos erros quanto mais debatermos, discutindo de forma crítica e objetiva questões e não pessoas. Na medida em a sociedade civil brasileira se fortaleça e construa um espaço público democrático onde questões como a que eu apresentei nesta nota sejam discutidas, esmiuçadas. A campanha eleitoral do próximo ano será uma boa oportunidade para isso. Temos uma sociedade responsável, como ficou demonstrado pela forma que reagiu diante da crise de energia. Estamos caminhando na direção a um debate público maduro, ainda que lentamente. Tratemos de apressar o passo, rever nossa política econômica, deixar claro que a taxa de câmbio real deve se manter aproximadamente no nível atual, concentrar todos os esforços na exportação, e mudar o rumo do país.