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Três Responsabilidades
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Fiscal responsibility is not enough. We also need
exchange rate and monetary responsibilities.
Folha de
S.Paulo, 7.11.2001
José Serra é um político e um economista dotado de
extraordinária capacidade, que nos últimos anos viu-se diante do desafio de dirigir a
política de saúde. Vem realizando um trabalho memorável nessa área, aliando coragem,
determinação e criatividade. Não me lembro, nos muitos anos em que acompanho a vida
pública brasileira, de um ministro da Saúde que tenha realizado tanto. Em compensação,
pouco ou nada disse sobre economia. Aplaudiu o Plano Real, mas, em seguida, quando viu os
rumos que a política econômica brasileira estava seguindo, permaneceu calado. Não tinha
outra alternativa.
Rompeu o silêncio
nos últimos dias, quando afirmou que, além da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Brasil
precisava de uma lei de responsabilidade cambial. Surpresa! Que pretenderá um dos dois
mais prováveis candidatos do PSDB à Presidência da República dizer? Uma lei mesmo? Uma
lei para controlar quem?
O ministro não
precisa responder a questões tolas. O que ele disse, com muita clareza, é que não basta
inflação baixa e responsabilidade fiscal para o Brasil alcançar a estabilidade
macroeconômica e retomar o desenvolvimento: é preciso responsabilidade cambial. E,
adiciono, é preciso também responsabilidade monetária.
Responsabilidade
fiscal significa a União, os Estados e os municípios -o Estado, em suma- não gastarem
mais do que ganham, não incorrerem em déficits públicos crônicos que aumentem a
dívida pública -o que os levaria ao descontrole e à crise.
Responsabilidade cambial significa a nação não gastar mais do que ganha, não incorrer
em déficits crônicos em conta corrente que aumentem sua dívida externa pública e
privada -o que a levaria ao descontrole e à crise.
As duas
responsabilidades são muito semelhantes, mas a segunda é mais importante do que a
primeira, porque envolve toda a nação, não apenas o setor público. Nenhum país pode
pensar em desenvolvimento sustentado endividando-se irresponsavelmente, pensando que é
possível basear seu crescimento na poupança alheia. Um país pode endividar-se
externamente, desde que por período limitado e com projetos definidos.
A visão econômica
única, ultraliberal, que dominou a economia mundial nos últimos 20 anos, nega essa
obviedade. Sua corrente ligada às finanças internacionais afirma que os países ricos
financiarão os pobres com empréstimos e investimentos diretos, desde que o país pobre
observe responsabilidade fiscal. Sua corrente ligada à burocracia internacional percebe
que esse tipo de argumento é insustentável e volta-se para seu próprio umbigo teórico
para pontificar a tese dos déficits gêmeos: se houver déficit público, haverá
déficit em conta corrente... Ora, essa teoria é com frequência negada na prática dos
países.
No Brasil, afinal,
em 2001, nos demos conta de que não basta ser responsável no plano fiscal, é preciso
também sê-lo no cambial. Verificamos que nosso endividamento externo foi muito além do
que seria razoável e que financiou principalmente consumo, não investimento. Verificamos
ainda que, se e quando houve investimento líquido, esse investimento externo não gerou
aumento de capacidade exportadora.
A política
econômica do governo caminhava para o desastre, quando o presidente da República, em
1999, antecipou-se à crise e desvalorizou o real. Mais recentemente declarou que a
prioridade absoluta agora é a exportação. A equipe econômica, entretanto, continua
pautando-se pelo ultraliberalismo e a se opor a uma política industrial conjugada à
comercial. Não logrou impedir a segunda e necessária desvalorização do real, neste
ano, mas não sabe como aproveitá-la em favor do país.
Precisamos,
portanto, de uma lei de responsabilidade cambial. Uma lei para nós mesmos. Não podemos,
confortavelmente, manter uma taxa de câmbio elevada, salários correspondentemente altos,
consumo elevado e contar com a poupança externa. Mas precisamos também de uma lei de
responsabilidade monetária.
A idéia da
responsabilidade monetária não está clara no Brasil, cuja taxa de juros real continua a
ser a mais alta do mundo. O país continua a manter a taxa de juros real interna em um
nível superior ao verdadeiro risco-Brasil. Dessa forma contamina, empurrando para cima, o
risco-Brasil que o mercado financeiro internacional estabelece.
Responsabilidade
monetária não significa apenas não emitir moeda para financiar déficits. Isso é
responsabilidade fiscal. Responsabilidade monetária significa manter a taxa de juros a
mais baixa possível, compatível com a estabilidade de preços. Para isso, é preciso a
coragem de manter a demanda e a oferta agregadas sempre em tensão e a competência de
conservar os preços sob controle.
Os bancos centrais,
com exceção do Fed de Greenspan, em vez de buscar a taxa de juros "mais baixa
possível", tendem a buscar uma taxa de juros "confortável". Isso resulta
em desemprego e baixas taxas de crescimento. É a irresponsabilidade monetária. Há tempo
o Banco Central Europeu vem tomando essa atitude. Lá, entretanto, a irresponsabilidade
resulta em uma taxa de juros cerca de um ponto percentual acima daquela que seria ideal;
no Brasil, muitos pontos percentuais acima; lá, implica baixo crescimento; aqui,
estagnação e concentração de renda.
Essas três
responsabilidades são o teste de qualquer candidato à Presidência da República. O
ministro José Serra fez bem em lembrar a importância do câmbio e sempre foi um paladino
da responsabilidade fiscal. Tasso Jereissati foi o primeiro governador a fazer uma reforma
administrativa e sanear as finanças estaduais depois da transição democrática de 1985.
Mas é um candidato da oposição, o governador Anthony Garotinho, que está colocando no
centro de sua proposta de governo a baixa gradual da taxa de juros.
A economia
brasileira está quase estagnada há 20 anos porque não estivemos à altura dessas três
responsabilidades. Colocá-las em discussão na campanha presidencial é mais importante
do que nunca. Eu sei que existem candidatos que não são sequer responsáveis no plano
fiscal e fazem propostas sem se preocupar em mostrar como financiá-las. Espero que os
eleitores sejam capazes de rejeitá-los. Mas não tenhamos dúvida - não basta a
responsabilidade fiscal. É preciso ter também a responsabilidade cambial e a monetária.
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