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Brasil e Argentina
Luiz Carlos Bresser-Pereira
O Estado de
S.Paulo, 24 dezembro, 2001
A crise argentina,
culminando com a renúncia do Presidente Fernando de la Rúa, decorreu da incapacidade das
elites e do governo daquele país de deixar o câmbio flutuar. Foi conseqüência,
portanto, de grave erro de política econômica, que não pode ser atribuído apenas ao
presidente ou aos economistas responsáveis, mas que decorreu da enorme dificuldade em que
uma sociedade nacional se viu de analisar e debater em profundidade seus próprios
problemas. Foi também o resultado da irresponsabilidade das organizações econômicas
internacionais, particularmente do FMI, que só recentemente percebeu que continuar a
sustentar a política de câmbio fixo significava apenas agravar ainda mais a situação
do povo argentino.
O Brasil caminhava
para uma crise semelhante devido à política de câmbio após o Plano Real. Sua economia
estava diretamente ligada à da Argentina, seus índices de endividamento publico e
externo, de déficit público, e de desequilíbrio em conta-corrente, não eram muito
diferentes dos da Argentina. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, entretanto,
contrariando a tese de que os governos não desvalorizam suas moedas a não ser quando
forçados pelo mercado, teve a coragem e a visão de decidir pela flutuação do Real.
A interpretação
corrente é outra. A desvalorização de janeiro 1999 teria ocorrido porque a moratória
era eminente; porque já não havia alternativa. Mas isto não é verdade. O mercado, sem
dúvida, sinalizava a crise desde o segundo semestre de 1998, mas, como o exemplo da
Argentina demonstra, os países podem levar suas crises financeiras muito adiante. Se o
Presidente brasileiro tivesse se amedrontado, e mantido a política suicida, que
violentava os fundamentos macroeconômicos, continuaríamos hoje colados à Argentina e
participando da sua crise.
A desvalorização
poderia ter ocorrido antes, no final de 1985, mas o fato de que acabou sendo feita, ainda
que com atraso, não pode ser desconsiderado. Há três momentos em que se resolve uma
crise: tomando-se as decisões necessárias de forma antecipada, antes que ela ocorra;
quando o mercado dá os sinais de que é preciso resolvê-la; e em meio à própria crise.
O ideal é antecipar-se, mas não é fácil fazê-lo. Os que se antecipam podem sempre ser
acusados de haverem tomado decisões duras que na verdade não eram necessárias.
O mercado sempre
sinaliza os problemas com atraso. Mas quando isto aconteceu o presidente, apesar da
oposição dentro de sua própria equipe, decidiu enfrentar a questão, e deixou o câmbio
flutuar. A desvalorização real bem sucedida não foi maior porque a taxa de juros, que
foi corretamente elevada na ocasião, baixou depois para um nível ainda artificialmente
alto, incompatível com a estabilização macroeconômica.
Naquele momento
estava dado o sinal para a própria Argentina também deixar o câmbio flutuar. O peso
estava valorizado desde o Plano de Convertibilidad, levando a Argentina a contabilizar
altos déficits com a Europa e os Estados Unidos, os quais, entretanto, eram compensados
com um grande saldo no comércio com o Brasil, dada nossa própria sobrevalorização.
Os argentinos,
entretanto, não entenderam o sinal. Interpretaram a desvalorização brasileira como uma
agressão a eles. O ministro Cavallo, que falhou pateticamente na sua segunda tentativa de
estabilização, excedeu-se em ataques ao Brasil. Em 2000 escrevi um artigo sugerindo que
estava mais do que na hora de a Argentina desvalorizar o que me custou a pecha de
inimigo da Argentina.
Durante anos a
desvalorização era considerada impensável, quando nada pode ser impensável
em uma democracia. O debate público estava proibido pela própria sociedade. Não apenas
porque traria de volta a hiperinflação, mas também porque levaria a Argentina ao default.
Agora a Argentina já está na prática em default, a desvalorização está sendo
feita pelo mercado de maneira informal, e a insegurança em que vive seu povo é
dramática, tão dolorosa quanto a da época da hiperinflação.
Mesmo em meio à
crise é possível tomar medidas mais ou menos corretas. Em qualquer hipótese terão que
ser medidas corajosas, heterodoxas. Será impossível, por exemplo, evitar decisões que
envolvam alguma quebra de contratos. Mas é melhor modificar alguns contratos
ordenadamente do que deixar que eles sejam quebrados de forma caótica. Além de deixar
flutuar o câmbio será necessário transformar todas as dívidas internas em dólares em
dívidas em pesos, e, ao mesmo tempo, socorrer os bancos para que não quebrem. No plano
externo, não se trata de declarar moratória, mas de pacificamente entrar
em uma moratória, que na prática já existe, e iniciar um processo de
renegociação da dívida externa.
Nesta negociação
o FMI tem a obrigação moral de apoiar a Argentina, porque não há dúvida alguma de que
esse organismo internacional é responsável pela demora em resolver o problema e,
portanto, por seu agravamento. Durante anos o FMI concordava com o câmbio
sobrevalorizado, e exigia metas fiscais impossíveis de serem atingidas com esse câmbio.
Como os empresários sabiam que o câmbio era insustentável, não investiam, a economia
se mantinha em recessão, a receita fiscal ao invés de aumentar diminuía, e o déficit
público permanecia alto apesar das medidas de ajuste.
Afinal a Argentina
sairá da crise. Esperemos que isto ocorra logo, e bem. Se a crise do momento pouco
afetará a economia brasileira, porque os efeitos negativos que dela poderiam derivar já
ocorreram, a recuperação argentina será da maior importância para o Brasil. Argentina
e Brasil são países irmãos. Nossos interesses comuns são muito grandes. O Mercosul foi
um grande avanço que precisa ser aprofundado. E tudo isto voltará a ser possível no
momento em que a economia argentina voltar a crescer com estabilidade.
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