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A Armadilha dos Juros

Luiz Carlos Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano

A função principal da taxa de juros alta no Brasil
é manter artificialmente sobrevalorizado o câmbio flutuante.
Para quê?

Folha de S.Paulo, 10.2.2002

O documento “Uma Política de Desenvolvimento com Estabilidade” (www.bresserpereira.org.br/) vem recebendo grande atenção, e algumas críticas. Nossos críticos (Edmar Bacha, Chico Lopes, Fábio Giambiagi, e amigos do mercado financeiro) entretanto, têm centrado seu desacordo em um ponto: não seria verdade que as autoridades monetárias atribuam à taxa de juros múltiplas funções. Segundo eles, com a política de meta de inflação, o Banco Central só tem um objetivo: manter a taxa de inflação sob controle. Nenhum deles preocupou-se em defender o saber convencional segundo o qual as taxas de juros no Brasil seriam altas porque é alto o risco-Brasil. Podemos concluir, portanto, que deste “saber” estamos livres.
Os dados que apresentamos no trabalho, aliás, são contundentes: países com risco maior praticam no curto prazo (e alcançam no longo prazo) taxas muito menores do que o Brasil. Ao contrário de um saber convencional, o que se confirma é a teoria econômica. Esta nos ensina que, com mobilidade de capitais e câmbio flutuante, a taxa de juros é determinada pelo Banco Central. Não precisaremos, portanto, esperar que a dívida externa brasileira caia substancialmente em relação às exportações para que possamos baixar a taxa de juros de curto prazo.
Mas resta o problema da inflação. Para efeito de argumentação, vamos aceitar que seja verdade que o Banco Central use a taxa de juros apenas para mantê-la sob controle. Surge, então, uma pergunta: Por que precisa o Banco Central de 11% reais para controlar a inflação quando outros países conseguem o mesmo resultado com taxas muito mais baixas? Não é verdade que o que interessa no controle da demanda é variação da taxa de juros, não seu nível?
O curioso, porém, é que o patamar de taxa de juros em que esse controle ocorre no Brasil é completamente diferente dos demais países. Um país não endividado faz sua taxa de juros flutuar entre, digamos, 1 e 4 por cento reais, enquanto que um país com classificação de risco relativamente elevada deixaria essa taxa flutuar entre 3 e 6 por cento reais. Já no Brasil a taxa de juros real flutua entre 9 e 12 por cento reais.
Como pode ser isto? Só a existência de um duplo equilíbrio e o fato de que existem equilíbrios benignos e perversos explica tal situação. Fica claro, portanto, que estamos em uma armadilha, em um equilíbrio perverso, e que o objetivo fundamental de política econômica deve ser transitar para um equilíbrio benigno, compatível com o desenvolvimento do país. Foi este ponto, aliás que deixou excelentes economistas como Edmar Bacha e Chico Lopes curiosos e interessados.
Como mudar de patamar e sair da armadilha? Nossos críticos declaram-se vencidos. Argumentam com o modelo de inflação usado pelo Banco Central que indica aumento da inflação caso se queira transitar para um patamar benigno de taxa de juros. O problema não estaria principalmente nos efeitos inflacionários do aumento de demanda, mas na taxa de câmbio. A baixa da taxa de juros elevaria o câmbio, desvalorizando-o, e esse fato teria efeitos inflacionários inaceitáveis.
A função principal da taxa de juros alta no Brasil, portanto, é manter artificialmente sobrevalorizado o câmbio flutuante. Para quê? “Para que se possa seguir o modelo econômico do Banco Central e cumprir a meta de inflação!”, nos dizem. Podemos ver outras razões para se manterem os juros elevados, e outras razões ainda para manter o câmbio baixo, mas fiquemos com o argumento da inflação, que no caso do Banco Central é o essencial.
Um país pode seguir à risca um modelo de meta de inflação como o usado pelo Banco Central quando vive tempos normais, quando não está em uma armadilha de juros altos da qual precisa necessariamente escapar. Para sair de um equilíbrio perverso, modelos assim podem ser contraproducentes.
Imagine-se que o Presidente Fernando Henrique Cardoso houvesse usado um modelo desse tipo em janeiro de 1999, quando decidiu, com coragem, desvalorizar o câmbio? Graças a isto, o Brasil, que sofrera enormes prejuízos entre 1995 e 1998 com o câmbio sobrevalorizado e caminhava para o desastre, escapou da crise, começou a equilibrar suas contas externas. E o custo em termos de inflação foi infinitamente menor do que os modelos econômicos previam. Não havia então uma política de meta de inflação, mas o argumento que usava o Banco Central para se opor à desvalorização necessária era exatamente o mesmo do de hoje.
Diante do aquecimento da economia ocorrido no início de 2001, o governo reagiu subindo os juros que já estavam muito altos. A partir da crise de energia, porém, o desaquecimento foi rapidíssimo, de forma que, afinal, o ano foi de recessão não de expansão. O PIB pouco cresceu, a renda na indústria em São Paulo caiu 10,2%, e a remuneração dos trabalhadores caiu 9,3% no mesmo período, segundo dados do SEADE-DIEESE. Diante do desaquecimento, não poderíamos – se estivesse claro então para nós o equilíbrio perverso em que nos encontramos – ter voltado para o nível anterior da taxa nominal de juros? Se temíamos a inflação, não teria bastado a venda de dólares ou de títulos cambiais?
Fique claro, porém, que não estamos sugerindo o abandono da política de meta de inflação. Pelo contrário, queremos fortalecê-la. Mas fortalecê-la tornando-a mais pragmática e flexível. Nosso problema fundamental no momento é escapar da armadilha da taxa de juros, e para isto esta flexibilidade é essencial. A política de metas de inflação surgiu no mundo desenvolvido para substituir a ortodoxia monetarista, que falhara. Usando uma função de reação baseada em um modelo rígido, voltamos à velha ortodoxia, e desconsideramos o problema do emprego ou do hiato de produto, que nenhum banco central de fato desconsidera.
Por que estamos presos nessa armadilha? Por dois motivos. Primeiro, porque a política de taxas de juros elevadas instalou-se no Brasil na segunda metade dos anos 80, como uma reação ao populismo econômico, que praticava taxas de juros negativas. Uma reação que ainda continua a prevalecer em muitos meios, e se tornou tão irracional como era e é irracional o populismo. Segundo, porque foram atribuídas funções múltiplas à taxa de juros, de forma que se não fosse por esse motivo seria pelo outro que os juros deveriam ser altos.
Depois da persistente manutenção da taxa de juros em nível muito elevado é natural que surja o medo de redução, e que esse nível se torne uma convenção, no sentido keynesiano do termo, e também uma armadilha. Não será, portanto, fácil escaparmos do equilíbrio perverso de taxa de juros em que nos metemos há muitos anos.
Para sair dessa armadilha poderíamos pensar em aperfeiçoar a política de meta de inflação. Primeiro, utilizando-se a “core inflation”, isto é, eliminando-se os componentes transitórios da inflação. Segundo, conforme sugeriu John B. Taylor, um dos formuladores a política de metas de inflação, reduzindo ou eliminando a taxa de câmbio do modelo, pois, conforme ele argumentou, se a taxa de juros reage ao hiato do produto e à meta de inflação (e não apenas à última) já há uma importante reação indireta à taxa de cambio.
Os aperfeiçoamentos do modelo referido facilitarão a transição do equilíbrio perverso em que nos encontramos para um nível compatível com as classificações de risco do país, mas é preciso ficar claro que se não reconhecermos que vivemos ainda uma situação anormal, e se o modelo aperfeiçoado não for usado de forma pragmática e corajosa, continuará impossível fazer a mudança de regime de política econômica.
Em compensação, essa mudança não tem como condição que se completem todas as reformas estruturais. E certamente não é necessário esperar até que a nossa situação de endividamento externo melhore substancialmente, a ponto de o risco-Brasil baixar. Será, porém, essencial continuar a aprofundar o ajuste fiscal que vem com sucesso sendo empreendido nos últimos três anos.
Um crítico que preferimos não citar sugeriu que o país já está habituado a taxas de juros como as atuais, que seriam compatíveis com o desenvolvimento do país. Esta é uma opinião irresponsável, que ignora os efeitos explosivos dos juros persistentemente elevados sobre o déficit e divida (a “aritmética monetarista desagradável” de Sargent e Wallace). Tal situação só seria viável se os salários fossem rebaixados por decreto, como se pretendeu fazer na Argentina, de forma que os lucros esperados dos novos investimentos se tornassem tão altos a ponto de suportar o custo do capital. Podemos assegurar a esse crítico que não apenas os trabalhadores, mas também os empresários brasileiros repudiariam tal impossível loucura. É certo que o binômio “redução da taxa de juros - depreciação do câmbio” reduz também os salários, mas de forma provisória, porque logo a economia retoma: quem é atingido definitivamente são apenas os rentistas.
Outro crítico tomou a paridade média de 1947 a 2001, para ‘constatar’ que o real está depreciado hoje em 32%. Ora, dado o alto nível de endividamento externo existente hoje no Brasil, a taxa de equilíbrio não tem nada a ver com aquela paridade. Poder-se-ia tomar a taxa média de câmbio real de 1984-1993, quando o país realizou grandes superávits comerciais e equilibrou sua conta corrente, mas mesmo esse período não é seguro, porque nosso endividamento externo em relação às exportações e ao PIB era, então, substancialmente menor do que o atual.
Como nação não temos alternativa senão escapar da armadilha de juros em que nos metemos. Para isto, não há caminhos claros e seguros. Modelos rígidos são inúteis. É preciso prudência combinada com determinação. Isto não nos faltou, em alguns momentos, no passado. Da mesma maneira que o governo, em uma primeira etapa, escapou da armadilha da inércia inflacionária e estabilizou os preços, e, em uma segunda, teve a coragem de fazer flutuar o câmbio, estamos seguros de que, a partir deste debate, seremos capazes de reduzir a taxa de juros do Banco Central para níveis compatíveis com o risco Brasil – o que facilitará enormemente a outra etapa: reduzir esse risco. Não há razão alguma para nos conformarmos com uma estabilidade macroeconômica pela metade, e com a semi-estagnação em que nos encontramos há 20 anos.