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Celso Daniel, Aluno e Amigo
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Palavras na
homenagem prestada a Celso Daniel
pela EAESP/FGV, 20 de fevereiro de 2002.
Celso Daniel foi meu aluno, meu orientado de doutorado, e
meu amigo. Muito mais do que isto, entretanto, foi um notável homem público que a GV de
São Paulo ajudou a formar.
Ele fez seu mestrado em administração pública na Escola
no início dos anos 80, quando a perspectiva de vitória na luta contra o regime militar
fazia renascer nos nossos alunos o espírito republicano de inconformidade com o quadro
vigente, e de determinação em lutar por um país mais democrático e menos injusto. O
mesmo tipo de espírito que existira no final dos anos 60, mas que em seguida se perdera
em face à repressão política e à anestesia provocada pelo milagre econômico.
Celso Daniel veio para a Escola para estudar
Administração e Planejamento Urbano. O planejamento urbano, no qual haviam sido
depositadas grandes esperanças nos anos 50, recuperava agora interesse através da idéia
mais modesta da administração local e da participação social. No lugar do grande
planejamento, a administração do dia a dia, que não dispensava a visão do futuro, mas
a buscava através de estratégias de convivência urbana.
Nesse quadro, estudando e praticando a administração
pública, Celso Daniel se formava como um técnico um especialista em
administração e planejamento urbano. Mas, como ele bem demonstrou, a Escola jamais se
limitou a formar técnicos: procurou sempre dar a seus alunos uma visão mais ampla da
sociedade em que vivemos, e de nossas responsabilidades para com ela. Nessa missão,
poucas vezes ela foi tão bem sucedida quanto no caso de Celso Daniel.
Embora se vendo como um técnico e um intelectual, que
jamais se conformou em não ter tempo para completar seu doutorado, Celso Daniel era, na
verdade, um político no sentido mais nobre do termo. A seus conhecimentos, ele adicionava
uma liderança inata, que provinha de sua capacidade de constituir equipe, tomar
decisões, e resolver problemas.
Eleito prefeito de Santo André pelo PT, partido que
ajudara a fundar, essa liderança comprovou-se de maneira extraordinária. Ele conseguiu
envolver toda a sociedade local trabalhadores, classe média, empresários
na reconstrução de sua cidade uma cidade essencialmente industrial que enfrentava
momentos difíceis com a crise econômica, que era, principalmente, uma crise da
indústria.
Eleito prefeito, deputado federal, reeleito duas vezes
prefeito de sua cidade, sempre com extraordinária aprovação popular, Celso Daniel
construía sua visão do Brasil e do seu desenvolvimento econômico e social, através da
administração local. No único intervalo em que não exerceu mandato político, em 1993
e 1994, procurou-me para ser seu orientador de doutorado. Seu projeto era de transferir
para o plano teórico aquilo que realizara na prática: o desenvolvimento local. Mas era
mais ambicioso. Imaginava que a partir do desenvolvimento local seria possível promover o
desenvolvimento nacional. Que, no mundo globalizado em que vivemos, as cidades assumiam um
novo papel: passavam também a ter o papel de sujeitos do desenvolvimento, na medida em
que criavam externalidades ou sinergias essenciais para ele.
A idéia era atraente na medida em que tirava o foco da
visão centralizada de governo que sempre tivemos. Estava de acordo com o espírito
dominante após a redemocratização que afirmava que descentralizar é uma estratégia de
fortalecer o estado, não de enfraquecê-lo, mas avançava ao recusar a tese conservadora
e individualista de que os sujeitos do desenvolvimento são apenas os indivíduos e as
empresas. Não, segundo Celso, também as cidades, preferivelmente organizadas em redes,
podem desempenhar esse papel. Embora eu tivesse dificuldade em ver como ele conseguiria
superar todas as demandas que a vida pública lhe impunha, e demonstrar esse ponto de
vista através de um trabalho teórico, estimulei-o a levar adiante sua idéia, e a
escrever sua tese. Logo, entretanto, foi chamado para ser candidato a deputado federal, e
o projeto teve que ser postergado.
Encontramo-nos várias vezes em Brasília, nos dois anos
em que foi deputado federal. De volta a Santo André, voltou a realizar uma excepcional
administração local, unindo toda a sociedade local. Não logrou, porém, ver comprovada
na prática sua idéia de que o desenvolvimento local se transformaria em desenvolvimento
nacional. O Brasil continuou a avançar, mas muito lentamente.
Chamado a ser o coordenador do programa de governo de seu
partido na disputa pela Presidência da República, tinha agora a oportunidade de somar
sua experiência e seus conhecimentos na formulação de um projeto de desenvolvimento com
justiça. Sua missão, porém, foi traiçoeiramente interrompida. Não escreveu sua tese,
não formulou o programa de governo de seu partido, mas semeou idéias, e deixou uma
extraordinária obra administrativa e política, que por muito tempo será lembrada pelos
brasileiros, pelo povo de Santo André e do ABC, e por seus amigos e colegas da GV de São
Paulo.
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